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16 | II Série A - Número: 108 | 5 de Junho de 2008

A procedência da tese contrária, que fez vencimento, não dependeria apenas da atribuição à expressão «regime das forças de segurança», utilizada naquele preceito constitucional, de uma maior amplitude de significado do que a que cabe a idêntica expressão contida na alínea u) do artigo 164.º da Constituição da República Portuguesa, fazendo-a abranger aspectos do regime que estão para além da definição das grandes linhas reguladoras de todas as forças de segurança e da identificação dos corpos que as constituem, juntamente com a fixação das tarefas e competências que cabem a cada um deles. Desde que devidamente fundamentada, a extensão do alcance do conceito seria um passo insusceptível, em si, de levantar objecções legítimas, pois a leitura funcional dos conceitos integrados em proposições jurídicas, dada a «sua subordinação ao juízo de valor que aponta um fim» (Baptista Machado, prefácio a K. Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, Lisboa, 1965, XXXI) — conducente, eventualmente, a denotações de sentido não coincidentes —, é uma operação hermenêutica normal, de há muito propugnada pela melhor metodologia jurídica.
Mas não basta, na verdade, dar esse passo, pois o que está em causa, como matéria de remissão para acto regulamentar, não é, globalmente, o regime privativo da Polícia Judiciária, nem sequer, in toto, a sua organização interna. É apenas, um concreto aspecto da organização interna desta entidade: a distribuição, pelas várias unidades que a compõem, das tarefas e competências que lhe estão cometidas. Sendo assim, a conclusão a que acórdão chegou teria que vir apoiada numa fundamentação que gerasse o convencimento de que o âmbito da reserva de lei do artigo 272.º, n.º 4, cobre essa específica dimensão organizatória de qualquer força de segurança.
Ora, em minha opinião, a fundamentação apresentada não logrou cumprir este ónus de argumentação.
A primeira razão em que assentou a decisão de violação da reserva de lei é de índole sistemática, prendendo-se com a (afirmada) articulação de sentido entre as duas componentes do artigo em questão. No entender do acórdão, a exigência de que o modo de organização interna de cada uma das forças de segurança deve constar de lei «(…) resulta da imposição constitucional à lei, contida na segunda parte deste artigo — “sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional”.» Não pode perder-se de vista, contudo, que «no preceito em análise definem-se duas regras distintas» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra, 957), ainda que integrantes do mesmo domínio normativo. A primeira regra é de cunho competencial, consagrando o princípio da reserva de lei, para a fixação do regime das forças de segurança; a segunda é de natureza material, estabelecendo o princípio da unidade de organização das forças de segurança para todo o território nacional.
Este último segmento do preceito impõe que todas as forças de segurança formem um corpo único em todo o território da República, obedecendo a uma direcção central, de acordo com uma estrutura hierárquica unificada. O alcance do princípio é, pois, proibitivo da existência de forças de segurança regionais ou locais (cfr. João Raposo, Direito policial I, Lisboa, 2006, 41). Como princípio básico organizatório de todas as forças de segurança, diz-nos o que o regime de cada uma delas não deve conter, sendo inteiramente silente quanto ao modo de regulação e aos conteúdos da orgânica interna das várias forças policiais. Nem a sua localização contígua ao princípio de reserva de lei é de molde a justificar qualquer inferência quanto à cobertura, pelo âmbito deste princípio, da repartição interna das competências funcionais. Trata-se de questões em planos normativos distintos, envolvendo distintas dimensões organizacionais: a questão que nos ocupa tem a ver com um aspecto do regime privativo de uma dada força de segurança, sendo atinente à sua orgânica interna, ao passo que a organização que é objecto do princípio da unidade é uma componente essencial do regime geral de todas as referidas forças — constitui, repete-se, um princípio básico definidor do sistema global das forças de segurança. Pretender extrair deste princípio, pelo simples facto de ele se referir à «organização», uma directriz vinculativa quanto ao conteúdo necessário da lei reguladora da orgânica interna da Polícia Judiciária é um salto interpretativo que nenhum critério hermenêutico dotado de validade autoriza. Quanto a esta questão — e não é outra a questão de constitucionalidade aqui sub judicio —, o princípio da unidade de organização é absolutamente neutro e inócuo.
Cumpre assinalar, aliás, que pelo menos os dois primeiros trechos doutrinais com que se intenta abonar a decisão passam inteiramente ao lado desta questão. Ninguém duvida que a «criação, definição de tarefas e direcção orgânica» das forças de segurança é matéria de lei, como ninguém porá em causa que a exigência tenha sido acatada pelo Decreto da Assembleia da República n.º 204/X. E a invocação destas posições doutrinais é tanto mais falha de pertinência quanto é certo que elas, na medida em que atribuem competência também ao Governo para a regulação daqueles pontos de regime, se apresentam datadas, sendo insustentáveis após a Revisão Constitucional de 1997. De facto, atento o disposto, hoje, na alínea u) do artigo 164.º, essa matéria é de competência exclusiva da Assembleia da República, integrando a reserva absoluta de competência legislativa deste órgão.
A decisão de que divirjo estriba-se também numa razão de fundo, de ordem substancial ou teleológica. A imposição de acto legislativo justificar-se-ia pela «essencialidade da matéria a regular». Mas, se bem ajuízo, a fundamentação do acórdão claudica na identificação, em termos convincentes, das causas dessa característica distintiva.