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II SÉRIE-A — NÚMERO 184 24

Pelo exposto, a conclusão segundo a qual esse fim almejado pelo legislador que estabeleceu uma nova

incriminação não poderia ser realizado por medida de política legislativa menos violenta do que aquela que se

traduz na previsão de novos crimes e de novas penas não pode, no caso, ser afirmada. Mas é por esse motivo,

e não por qualquer outro, que entendemos ser ainda, quanto a este ponto, a norma em causa lesiva do disposto

no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.

(Maria Lúcia Amaral e Pedro Machete).

Declaração de voto

Acompanho a decisão e, no geral, a fundamentação, mas desta me afasto quanto à posição assumida no

âmbito do ponto 18 quando se considera que a construção típica do crime de enriquecimento injustificado não

permite concluir que, através dele, se prossegue um bem jurídico digno de tutela penal.

A construção de uma norma criminal que se queira legitimada e reconhecida como tal exige a tutela de um

bem jurídico-penal que se reflita, de forma explícita ou implícita, mas sempre clara, na ilicitude típica. Ora, se é

certo que, por exigências de legitimação penal, as condutas proibidas e punidas devem estar referidas à

proteção de um bem jurídico-penal, não é menos certo que esse bem jurídico é incapaz de fornecer

imediatamente a conduta que tem de ser incriminada. A conduta em que se consubstancia um tipo de crime não

pode ser determinada por uma aplicação racionalmente dedutiva ou lógico-subsuntiva do bem jurídico. Ao bem

jurídico-penal cabe apenas a função de indicar o que pode ser legitimamente tutelado pelo direito penal, ou seja,

os valores e interesses essenciais à realização humana em sociedade que se encontram refletidos no texto

constitucional.

Cabendo ao bem jurídico a função de delimitar negativamente a conduta a criminalizar, então é possível

divisar no tipo incriminador do enriquecimento injustificado – artigo 2.º do Decreto 369/XII da Assembleia da

República pretende aditar à Lei 34/87, de 16 de julho – a proteção de um específico bem jurídico: a transparência

da situação patrimonial dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos. Trata-se de um valor ou bem

jurídico com capacidade para intervir na conformação de ilícitos e condutas penais. Na verdade, a consciência

atual da relevância do fenómeno e da origem da corrupção, suborno, clientelismo e fraude, assim como os

reflexos perniciosos que estes atos têm na sociedade e nas instituições, contribuem para que se conceda à

transparência dos proventos dos titulares de cargos políticos (e até aos demais funcionários públicos, em

especial os que exercem cargos de direção e chefia) a dignidade de bem jurídico-penal. Sabendo-se que a

corrupção - independentemente do valor, patrimonial ou não, e das suas manifestações concretas - provoca a

erosão da confiança nas instituições político-administrativas e inutiliza boa parte dos esforços de concretização

dos objetivos proclamados, aquela transparência assume grande importância social, tornando-se um bem cada

vez mais precioso aos olhos da comunidade. Um indício seguro dessa importância é a ligação desse valor a

bens constitucionalmente relevantes no exercício de funções públicas, como o da legalidade, da imparcialidade

e da exclusividade (cf. artigos 266.º, n.º 2 e 269.º da CRP). Ora, a prossecução objetiva, exclusiva e transparente

do interesse público impõe, como um dos seus corolários, o dever de idoneidade material ou o dever de

probidade, segundo o qual quem exerce funções públicas está proibido de se aproveitar dos poderes e da sua

posição como fonte de receitas ou vantagens para si ou para outrem.

De modo que, quem durante o exercício de funções públicas ou por causa desse exercício «adquirir, possuir

ou detiver património» que não tem justificação nos rendimentos e bens conhecidos e possuídos legitimamente,

cria no público a suspeita de aproveitamento do cargo para obtenção de vantagens indevidas; e ausência de

justificação desse património faz presumir a proveniência ilícita, com a consequente afetação da confiança da

comunidade nas instituições do Estado.

Simplesmente, ao medir-se o enriquecimento injustificado pelos rendimentos e bens «declarados ou que

devam ser declarados», a conduta a incriminar acaba por se distanciar do bem jurídico objeto de tutela. Com

efeito, se o titular de cargo político declarar, para efeitos fiscais ou extrafiscais, todos os rendimentos, incluindo

os de proveniência ilícita, fica fora do alcance do tipo de enriquecimento injustificado, porque o património que

adquirir durante o exercício do cargo não será «incompatível» com o declarado; já a aquisição lícita de património

que, por algum motivo, ainda não foi refletida nas declarações, preenche o elemento objetivo do tipo de ilícito,

porque revela incongruência com os rendimentos e bens declarados. Naquela situação, a incriminação do