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II SÉRIE-A — NÚMERO 184 20

17 – Os titulares de cargos políticos (incluindo-se nesta genérica categoria também os titulares de altos

cargos públicos) assumem perante a comunidade que servem especiais deveres e responsabilidades. Se

dúvidas houvesse quanto à justeza desta asserção, frequente na linguagem comum, ou quanto à possibilidade

da sua relevância no plano mais estrito da dogmática jurídico-constitucional, dissipá-las-ia o reconhecimento

pela CRP da existência de um estatuto dos titulares de cargos políticos, feito pelo artigo 117.º a propósito dos

«princípios gerais de organização do poder político». Aquele ao qual foi confiado, nos termos da Constituição,

um certo múnus, deve, perante a sociedade estadual, prestar contas pelos atos que pratique no exercício das

suas funções de forma mais exigente do que aquela que é prevista para quem não detém quaisquer poderes de

decisão quanto ao devir da coletividade. É isto mesmo que resulta do já referido artigo 117.º, que não apenas

prevê genericamente a responsabilidade política, civil e criminal dos titulares de cargos políticos pelas «ações e

omissões» conexas com o exercício de funções, como, para além disso ou por causa disso mesmo, endereça

ao legislador duas ordens de regulação: a lei deve – diz o n.º 2 do preceito – dispor sobre os «deveres

responsabilidades e incompatibilidades» desses titulares e sobre as «consequências do respetivo

incumprimento»; a lei deve – diz o n.º 3 – determinar os crimes de responsabilidade e as sanções que lhe sejam

aplicáveis. A Lei 34/87, de 16 de julho, a cujo articulado o decreto da Assembleia se propõe aditar o artigo 27.º-

A, sobre o crime de enriquecimento injustificado, ao estatuir precisamente sobre os «crimes de responsabilidade

dos titulares de cargos políticos», traduz o cumprimento, por parte do legislador ordinário, da ordem de regulação

que lhe é endereçada nos termos do n.º 3 do artigo 117.º da CRP.

Para além disso, não restarão dúvidas de que, por causa da especial posição que ocupam, sobre os titulares

de cargos políticos recairá um dever geral de «transparência» quanto a formas de condução de vida pessoal ao

qual não estará sujeito quem não detém quaisquer poderes de decisão pública. A legitimidade constitucional da

imposição deste «dever de transparência», de incidência essencialmente patrimonial, a quem decide

politicamente [publicamente], pode encontrar, sob o ponto de vista textual, fundamento bastante no já

mencionado artigo 117.º, referente à «especialidade» do estatuto dos titulares de cargos. O seu fundamento

axiológico geral, porém, encontrar-se-á porventura na formulação do seguinte princípio: se ao legislador incumbe

evitar que a confiança - entendida como acima se entendeu, enquanto elemento ético que sustenta o Estado de

direito democrático (cf., supra, ponto 13) - sofra erosão por causa da disseminação de práticas que se traduzam

no aproveitamento privado de bens ou vantagens que a toda a comunidade pertenceria usar ou fruir, sobre quem

dispõe de poderes de decisão - encontrando-se assim, pela natureza das coisas, em condições fácticas

eventualmente favorecedoras da ocorrência daqueles atos ilícitos - deve pesar um especial ónus de

«transparência» patrimonial, sem que com isso se deva entender que injustificadamente se invadem esferas

reservadas de vida, própria ou de terceiros. Assim é que a Lei 4/83, de 2 de abril (alterada por último pela Lei

38/2010, de 2 de setembro), que dispõe sobre o controlo da riqueza dos titulares de cargos políticos e altos

cargos públicos, manda que esses mesmos titulares apresentem no Tribunal, no prazo de 60 dias contado do

início ou da cessação de funções, declaração de rendimentos, património e cargos sociais. Tal é suficiente para

que se conclua que sobre aquela categoria de pessoas que segundo o artigo 27.º-A serão os agentes típicos do

novo crime de enriquecimento injustificado pesa um dever geral, e de cumprimento constante, de

«transparência», dever esse que se traduz numa obrigação especial de revelação de quaisquer vicissitudes por

que passe o seu património. Semelhante dever não impende sobre quem não exerce quaisquer cargos públicos;

e da justeza da sua imposição não pode duvidar-se, atendendo ao que decorre do sistema da Constituição.

18 – Não obstante a conclusão, haverá desde já que esclarecer que do estatuto constitucional dos titulares

de cargos políticos nenhuma ilação se pode retirar que altere as ponderações já feitas pelo Tribunal a propósito

do ilícito criminal que o decreto da Assembleia, através do artigo 335.º-A, pretendia aditar ao Código Penal.

No artigo 27.º-A, que o mesmo decreto pretende aditar à lei sobre os crimes de responsabilidade dos titulares

de cargos políticos, formula-se uma incriminação típica que é em tudo homóloga àquela que consta do referido

artigo 335.º-A. O crime de enriquecimento injustificado dos titulares de cargos políticos só se distingue do outro

crime com o mesmo nome, previsto para ser aplicado a qualquer cidadão («quem, por si ou por interposta

pessoa...»), pela especial condição do agente que o comete e pela maior severidade das sanções que lhe são

aplicáveis. Em tudo o resto, a estrutura dos dois tipos incriminadores permanece idêntica.

Sendo assim construído o tipo constante do artigo 27.º-A, todas as questões que se colocaram a propósito

do seu homólogo (o previsto no artigo 335.º-A, a aditar ao Código Penal) mantêm inteira pertinência.