O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

II SÉRIE-A — NÚMERO 184 16

legislador, o «comportamento» criminalizado traduzir-se-á - se a estes dados juntarmos a qualidade do agente

típico da infração, o cidadão comum - na verificação de qualquer variação patrimonial, ocorrida a qualquer altura

na esfera de qualquer pessoa, entre o «tido» e o sujeito a declaração.

Perante esta incriminação «típica», porém, torna-se desde logo manifesto que, com o seu desenho, o

legislador não cumpriu o dever que sobre ele impende de identificar com a máxima precisão que a natureza da

linguagem consentir o facto voluntário que considera punível. A descrição da infração criminal, deste modo feita

pelo decreto da Assembleia, não cumpre na verdade as exigências decorrentes do princípio constitucional de

lex certa, textualmente sediado no n.º 1 do artigo 29.º da CRP. É que, desde logo, não cumpre a função precípua

de garantia que o princípio da legalidade penal, nas vestes de tipicidade, prossegue - a de tornar cognoscível o

sentido da proibição penal, de modo a que os cidadãos com ela se possam conformar ou por ela se possam

orientar. Como se disse no Acórdão 168/99 (cf., supra, ponto 10.2.): «[a]veriguar da existência de uma violação

do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da

conformidade da norma penal [aplicável] com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua

função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma

incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se

constitucionalmente ilegítima». Ora é precisamente nestas circunstâncias que se encontra a norma

incriminadora constante do n.º 1 do artigo 335.º-A, que o decreto da Assembleia pretende aditar ao Código

Penal.

Com efeito, e em primeiro lugar, ao considerar-se punível a verificação de uma mera variação patrimonial,

ou uma incongruência entre duas grandezas - o património «tido» e o sujeito a declaração - deixa-se por

identificar o concreto «comportamento», comissivo ou omissivo, ao qual se associa o juízo de desvalor penal. A

exigência que decorre do n.º 1 do artigo 29.º da CRP, segundo o qual «[n]inguém deve ser sentenciado senão

em virtude de lei [...] que declare punível a ação ou omissão [...]» fica assim por cumprir. O que o artigo 335.º-A

do decreto da Assembleia pretende criminalizar confunde-se com um estado de coisas reportado a uma situação

objetiva de incompatibilidade. Perante uma tal deficiência na construção legislativa do tipo, fica-se logo por esse

motivo sem saber em que é que consiste, com o mínimo de determinação exigível, o facto voluntário punível, de

modo a que com a previsão penal se possam harmonizar os comportamentos dos cidadãos.

Depois, e em segundo lugar, permanecem incertezas e dúvidas quanto ao sentido que deva ser atribuído

aos requisitos dos quais depende o preenchimento do tipo criminal, ou, o que é dizer o mesmo, relativamente

às condições que devem estar reunidas para que, considerando-se perfeito o crime, quanto a ele se possa

deduzir acusação.

Sendo dois os elementos da infração – (i) património adquirido, possuído ou detido; (ii) incompatibilidade

entre este e o sujeito a declaração – parece certo que o cerne da censura penal estará na verificação da

«incompatibilidade» entre as duas grandezas. Já se tinha salientado este ponto. Porém, o que importa agora

notar é que não há certezas quanto ao que se deva entender por tal «incompatibilidade».

Pode com efeito entender-se que a variação patrimonial censurada é, apenas, de ordem numérica ou

quantitativa: se assim for, o tipo criminal preencher-se-á – considerando-se portanto perfeitas as condições para

que, relativamente a ele, se deduza acusação – com a mera verificação de uma não coincidência entre os

montantes a que ascendem as duas grandezas em confronto, e isto qualquer que seja a respetiva origem ou

proveniência (lícita ou ilícita). Para corroborar que foi este o sentido que o legislador quis conferir ao termo

[incompatibilidade] invocar-se-ão, porventura, dois argumentos. Por um lado, um argumento de ordem literal,

decorrente do que vem disposto nos n.os 5 e 6 do artigo 335.º-A. Como no n.º 5 do preceito se faz depender a

punibilidade da «ação» do montante a que ascenda a discrepância entre o que é «tido» e o que é «declarado»

(se a discrepância for inferior a 350 salários mínimos mensais a «conduta» não será punível) e no n.º 6 se agrava

a pena (até 5 anos de prisão) caso tal montante ultrapasse os 500 salários mínimos mensais, dir-se-á que o

sentido a atribuir ao conceito, nuclear, de variação patrimonial será de ordem estritamente quantitativa. Para

confirmar a conclusão invocar-se-á porventura ainda um outro argumento, desta vez de ordem histórica. Uma

vez que os trabalhos preparatórios (cf., supra, ponto 6) revelam que o legislador, ao pretender construir o tipo

criminal do enriquecimento injustificado por contraposição ou diferença em relação ao anterior tipo de crime de

enriquecimento ilícito, propositadamente eliminou, dos termos em que descreve a nova infração, as referências

antes existentes à ausência de origem lícita determinada dos bens e rendimentos ou aos bens legítimos, dir-se-

á então que o novo tipo de crime, desenhado portanto com maior amplitude, se perfaz com a mera verificação