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II SÉRIE-A — NÚMERO 184 22

Dissentimos deste entendimento pelas seguintes razões:

1 – Tal como se diz no Acórdão (ponto 10.1.), o princípio constitucional da necessidade de pena desdobra-

se em duas vertentes essenciais: é não apenas exigível que, perante cada nova incriminação, se possa divisar

no «tipo» desenhado pelo legislador a prossecução de um bem jurídico que seja digno de tutela penal, como é

também necessário, para que se cumpram as exigências decorrentes do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, que perante

a nova decisão de criminalizar se revele tal bem carente, ou precisado, da referida tutela.

Acompanhamos a conclusão sufragada pelo acórdão quanto à impossibilidade de se divisar, perante o tipo

incriminador constante do artigo 1.º do decreto parlamentar - relativo ao artigo 335.º-A do Código Penal -, um

qualquer bem jurídico que seja digno de tutela penal; mas dissentimos da maioria quanto à possibilidade, por

ela afirmada, de sustentar idêntica conclusão quanto ao previsto no artigo 2.º do decreto. Aí, entendemos que o

problema não estará na ausência de bem digno de tutela, mas antes na impossibilidade de se afirmar que o bem

protegido pelo legislador será ainda, perante a formulação típica que é desenhada, um bem «carente» ou

«precisado» dessa mesma tutela.

2 – A impossibilidade de se divisar na concreta formulação do tipo criminal previsto pelo artigo 335.º-A do

Código Penal um qualquer bem jurídico que seja digno de tutela penal só surge justificada, a nosso ver, pela

consideração que segue.

Ao cidadão comum, que é o agente típico da infração prevista no artigo 335.º-A, não se conferem especiais

poderes de decisão que afetem a vida da sociedade política como um todo. Por isso mesmo, não se encontra

ele sujeito a um qualquer dever, que o oponha a toda a comunidade, de perante ela desvelar permanentemente

as vicissitudes por que passe a qualquer momento e por qualquer motivo o património que adquira, detenha ou

possua. O dever que impende sobre qualquer membro comum da sociedade política, que é constitucionalmente

fundado e que deve ser prestado perante a autoridade estadual, é o de pagar impostos (artigo 103.º, n.º 3 da

CRP), e, consequentemente, de proceder às declarações fiscais nos termos em que o impõe a lei geral tributária.

Do incumprimento desse dever decorrem as consequências que a ordem jurídica, nos termos dessa mesma lei,

já prescreve. Ver no incumprimento desse dever – traduzido em qualquer incompatibilidade ocorrente a qualquer

momento entre o património «tido» e o «declarado» ou que deva sê-lo – uma ofensa, atual ou potencial, à

preservação da ordem constitucional, porque à manutenção da confiança no Estado de direito e na democracia,

é algo que, por se tornar insuscetível de ser racionalmente credenciado, se revela à evidência como

manifestamente excessivo.

3 – Todavia, e diversamente do que sucede com o cidadão comum, o agente típico do crime de

enriquecimento injustificado, previsto no artigo 27.º-A da Lei sobre os crimes da responsabilidade dos titulares

de cargos políticos, não está apenas adstrito a uma obrigação, decorrente do dever fundamental de pagar

impostos, de proceder àquelas declarações de património que sejam prescritas pelas regras gerais das leis

tributárias que sejam aplicáveis. Muito mais do que isso, sobre os titulares de cargos políticos impende um dever

especial, fundado na natureza própria do múnus que exercem, de desvelar perante a comunidade todas e

quaisquer vicissitudes por que passe o seu património durante o período de tempo correspondente ao exercício

de funções. A conclusão, que induz a que se tenha em conta a especialidade da relação que, por esta via, se

estabelece entre os titulares destes cargos e a comunidade política no seu todo considerada, não pode deixar

de ter consequências quando se analisa a conformidade do prescrito no artigo 27.º-A com os padrões

legitimadores da constitucionalidade de qualquer nova incriminação.

4 – Na verdade, não cremos que seja possível transpor para este novo tipo de crime todas as considerações

que já foram feitas a propósito do enriquecimento injustificado do - chamemos-lhe assim - «cidadão comum».

Uma vez que o agente típico da infração descrita pelo artigo 27.º-A vive em contexto juridicamente marcado pela

obrigação de desvelo de todo o seu património perante a comunidade que serve, qualquer «incompatibilidade»

ou incongruência que se detete entre aquele último e os rendimentos e bens declarados ou que devam sê-lo

traduz logo, por si própria e em si mesma, uma situação merecedora de um certo e determinado juízo de desvalor

jurídico. O espetro da diversidade de situações da vida que se pode albergar sob o tipo do enriquecimento

injustificado, quando previsto, enquanto crime, para o cidadão comum, estreita a sua amplitude quando o mesmo

tipo é previsto para ser aplicado, apenas, a titulares de cargos políticos. No que a estes últimos diz respeito,

qualquer divergência que se verifique ocorrer entre o património «tido» e o «declarado» [ou que deva sê-lo] terá

para o direito, só por si, um significado próprio, na exata medida em que será, também só por si, sinal de

incumprimento do especial dever de «transparência» a que a ordem jurídica obriga o agente.

5 – Se a este dado, que releva antes do mais da ordem jurídico-constitucional, se juntar um outro, já