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II SÉRIE-A — NÚMERO 107

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Albuquerque3, corresponde «à esfera mais íntima da personalidade», e que a consagração da natureza pública destes crimes, ainda que de uma certa perspetiva reforce a proteção da vítima e possa contribuir para a redução deste tipo de crimes, pode pôr em causa o bem jurídico tutelado nos casos em que a vítima fundamentadamente não pretende fazer seguir o procedimento criminal. Relembre-se que o processo penal acarreta aspetos negativos com forte impacto psicológico que não devem ser ignorados, dos quais se destaca a sujeição da vítima a um penoso processo de revitimização, com a sujeição a exames médicos invasivos e inquirições que entram na sua mais profunda intimidade, mas que são indispensáveis à investigação criminal. Assim, qualquer alteração legal que atribua natureza pública aos crimes contra a liberdade sexual deverá evitar cair no erro de fazer prevalecer obstinadamente o interesse comunitário na persecução penal sobre a vontade da vítima, levar em conta em conta estes aspetos negativos associados ao procedimento criminal e prever, conforme defende a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima4 (APAV), uma válvula de escape através da qual se possa dar voz à vítima e valorar a sua vontade.

Tendo em conta o anteriormente exposto e a necessidade de assegurar o pleno cumprimento da Convenção de Istambul, com o presente projeto de lei, o PAN, como partido vinculado ao princípio da não-violência e que assume a linha da frente da defesa dos direitos das mulheres, propõe que todos os crimes contra a liberdade sexual, à exceção do crime de importunação sexual de pessoas maiores de idade, passem a ter a natureza pública, prevendo-se, contudo, e em linha com o que defendeu a APAV, que nos procedimentos iniciados pelo Ministério Público relativamente estes crimes contra pessoas maiores de idade a vítima possa, a todo o tempo, requerer o arquivamento do processo e que tal requerimento só possa ser recusado pelo Ministério Público quando, de forma fundamentada, se considere que o prosseguimento da ação penal é o mais adequado à defesa do interesse da vítima e que o pedido se deveu a qualquer tipo de condicionamento por parte do arguido ou de terceiro, caso em que deverá promover sempre a aplicação das medidas necessárias à sua proteção contra eventuais retaliações ou coação.

Paralelamente com o presente projeto de lei o PAN pretende assegurar duas relevantes alterações relativamente aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores.

Por um lado, propomos a eliminação da possibilidade de suspensão provisória do processo nestes crimes, por via da revogação dos atuais números 4 e 5 do artigo 178.º do Código Penal, uma vez que a prática revela que no âmbito destes crimes as crianças e jovens são frequentemente pressionadas a mudar o seu testemunho e que as próprias famílias são desincentivadas pelos próprios profissionais e pelo Ministério Público a suspender o processo. Diga-se que o condicionamento desta forma de resolução do conflito penal à necessidade de esta ser a melhor via de defesa do interesse da vítima, prevista na Diretiva 1/2014 da Procuradoria-Geral da República, na prática acaba por não funcionar, uma vez que na análise do interesse da vítima continua a prevalecer a errada ideia de que estes crimes, quando não deixam marcas físicas, são pouco graves e de que a não sujeição às adversidades do processo penal é sempre o melhor para a criança ou jovem – algo que nem sempre é verdadeiro, uma vez que o processo penal, se for capaz de respeitar as medidas de proteção previstas na lei5, e com o devido acompanhamento psicossocial poderá até ter um efeito catártico. Aliás, esta assunção de base é reflexo de uma perspetiva não psicológica mas jurídica, uma vez que estão amplamente descritos na literatura científica os efeitos nefastos, emocionais, sociais e psicológicos deste tipo de incidentes nas vítimas.

Por outro lado, propomos a alteração dos prazos de prescrição de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores e do crime de mutilação genital feminina, por forma a que se passe a assegurar que quando o ofendido for menor de 14 anos o procedimento criminal nunca se extinga antes de o ofendido perfazer 40 anos, e que quando o ofendido for maior de 14 anos passe a haver um prazo de prescrição de 20 anos que nunca poderá, no entanto, ocorrer antes de o ofendido perfazer 35 anos. É importante notar que estes crimes e o processo penal que lhe está associado são extremamente traumáticos para a vítima do ponto de vista físico e psicológico, inclusive com sequelas e distúrbios psíquicos. Atendendo a isto, no âmbito Projeto CARE – Rede de apoio especializado a crianças e jovens vítimas de violência sexual6, assinalou-se que o tempo que passa entre a perpetração do crime e a sua revelação pode variar em função do

3 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, 2010, página 556. 4 APAV (2018), Contributo da APAV referente ao Projeto de Lei n.º 1047/XIII/4.ª (PAN), página 10. 5 Diga-se que, segundo a APAV, em média a criança só é ouvida mais de um ano após a denúncia, o que enfraquece substancialmente a prova. 6 Projeto CARE (2017), Manual CARE – Apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, páginas 53 e 54.