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8 DE OUTUBRO DE 2021

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recolher as declarações da vítima que, não raras as vezes, se apresenta como o principal e único elemento de prova neste tipo de criminalidade»1.

O uso da declaração para memória futura consagra a efetiva proteção das vítimas, contribuindo para a prossecução da justiça e da verdade material. Este instituto permite ainda evitar situações de retaliação por parte dos agressores que visem intimidar a vítima.

Importante será considerar os efeitos do trauma na memória das vítimas. São inúmeras as vítimas que apresentam sintomas de perturbação de stress pós-traumático, como hipervigilância, pensamentos suicidas, memórias indesejadas do abuso, pensamentos intrusivos e ruminantes, ansiedade e até depressão, entre outros.

Vítimas que sofrem de stress pós-traumático podem apresentar dificuldades em sintetizar, categorizar e integrar a memória traumática numa narrativa, ou seja, lembrar-se do episódio e relatar os detalhes do que ocorreu, como foi a sua reação e a reação de outrem. É comum que, com o decurso do tempo, a memória perca a sua intensidade emocional, que exista um déficit na estrutura do discurso. «É sabido que quanto mais tardiamente são prestadas as declarações pelas vítimas, mais se intensificam as perturbações da memória fruto do trauma posterior, pelo que deve ser admitido e concretizado o depoimento da vítima, antecipadamente para memória futura»2.

Atualmente são três os fundamentos que justificam a antecipação da tomada de declarações, designadamente, motivos de doença grave, deslocação para o estrangeiro, ou tratando-se de vítimas de crime de tráfico de pessoas e crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.

Propomos que a este elenco se acrescente ainda o crime de mutilação genital feminina, pela sua natureza íntima, pela suscetibilidade de intimidação das vítimas e ainda para prevenir a revitimação das mulheres e meninas envolvidas no processo.

Face ao exposto configura-se como fundamental facilitar o acesso à declaração para memória futura às vítimas de crime de tráfico de pessoas, crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, crime de mutilação genital feminina e ainda de crime de violência doméstica, de modo a salvaguardar a espontaneidade e clareza do relato. Para este efeito propomos que a prestação de declarações para memória futura seja obrigatória sempre que requerida pela vítima ou pelo Ministério Público. Desde a consagração deste instituto na lei que se coloca a questão de saber qual o critério a usar na apreciação do requerimento de prestação de declarações para memória futura. Não se justifica que vítimas dos crimes acima referidos, profundamente traumatizantes, vejam o seu requerimento recusado, sendo expostas a situações de intensa vitimação.

É fundamental ainda reforçar a proteção das vítimas quando o inquérito corra contra pessoa indeterminada. Apesar da redação do artigo 271.º do Código do Processo Penal não fazer referência à necessidade de constituição de arguido para a prestação de declarações para memória futura, a doutrina diverge neste aspeto. Contudo, a redação do artigo 271.º do Código de Processo Penal não exige a prévia constituição de arguido. «Parece-nos despropositado o afastamento de tal ato processual somente pelo facto de ainda não existir um suspeito, máxime, arguido. Por outro lado, se nos atendermos no elemento sistemático, não é a não existência de arguido constituído ou inexistência de suspeito que fortalece ou não a presença do defensor»3.

Com a seguinte alteração à lei, será assegurado o acesso à declaração para memória futura, independentemente da constituição do ofensor como arguido, salvaguardando a segurança e bem-estar físico e psicológico da vítima. Esta mudança legislativa consagra na lei um efetivo compromisso na redução da incidência da vitimação secundária, pela proteção de todas as pessoas vítimas de crimes.

Assim, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, a Deputada não inscrita Cristina Rodrigues apresenta o seguinte projeto de lei:

Artigo 1.º Objeto

A presente lei procede à alteração do Código Processo Penal e do Estatuto da Vítima no sentido de assegurar

a audição para memória futura sempre que a vítima de crime sexual assim o requeira.

1 GOUVEIA, Joana Filipa Nunes (2020) – Declarações para Memória Futura: Enquadramento jurídico, prática e gestão processual, CEJ. 2 Processo n.º 14/20.4PB RGR-A.L1 9.ª Secção – desembargadores: Maria do Carmo Ferreira – Cristina Branco – Sumário elaborado por Susana Leandro 3 Idem.