O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

102

II SÉRIE-B — NÚMERO 20

fazem parte mais de 100 produtos. A maioria não necessita de prescrição médica e tem um valor terapêutico reduzido. Com este novo regime o Estado conta arrecadar mais de 2,5 milhões de contos, de acordo com os preços praticados em 1996. Esta verba deverá reverter para a comparticipação de novos medicamentos,-condiderados «inovadores terapéuticamente», ou dos que se destinam a doenças crónicas. É o caso dos neurolépticos, que devem passar a ser comparticipados a 100%, e dos antidepressivos, a 60%.»]

Tem de aceitar-se, naturalmente, que a classificação precisa de um medicamento é um problema técnico de complexidade e próprio de uma especialização científica, mas a posição generalizada de médicos psiquiatras é suficientemente clara. Nos considerandos finais do abaixo assinado intitulado «Pela igualdade no direito ao tratamento psiquiátrico», datado dc Julho do ano em curso (subscrito por cerca de 400 psiquiatras do País, foi entregue em mão à Sr." Ministra da Saúde, em Outubro do ano em curso, pelo Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos; saliente-se que o mesmo documento foi também assinado por 24 especialistas estrangeiros, membros da União Europeia de Médicos Especialistas, que então se encontravam reunidos em Lisboa; compreende-se esta solidariedade internacional, dada a singular posição do País no problema em apreço, não só em relação aos países de CE como em' relação a outros Estados europeus não comunitários) (cf doe. n.° 8), afirma-se (o destacado da transcrição é da nossa responsabilidade):

A prática continuada do erro acima demonstrado, vivida dramaticamente pelos doentes e familiares, é expressão de uma discriminação iníqua em relação aos doentes mentais, única na União Europeia, incorrecta sob o ponto de vista da medicina e da saúde, e injusta sob o ponto de vista social e ético, carecendo logicamente de uma rectificação urgente».

E ainda:

Os médicos psiquiatras sentem essa discriminação como uma desvalorização da própria psiquiatria como especialidade médica, dificultando a assistência psiquiátrica, com repercussão muito negativa no acesso ao tratamento, em prejuízo da recuperação da saúde mental do cidadão doente.

Pela sua importância justifica-se alargar a transcrição às conclusões, tanto mais que as mesmas nos merecem plena concordância:

Os médicos psiquiatras, abaixo assinados, reclamam, de acordo com a lei, que os medicamentos antipsicóticos (neurolépticos) e os estabilizadores de humor sejam incluídos no escalão A das comparticipações e os antidepressivos no escalão B. Que os medicamentos comprovadamente eficazes para a prevenção secundária das toxicodependências e do alcoolismo sejam igualmente incluídos no escalão B das comparticipações.

Não parece necessário insistir na situação que os psiquiatras, exactamente quem está mais próximo da realidade dóente-família refere como «vivida dramaticamente», mas justifica-se uma breve incursão por teneno jurídico, -já que o tópico da discriminação remete para temática de direitos fundamentais.

No n.° 1 do artigo 64.° a Constituição da República Portuguesa consagra o «direito à saúde»: «Todos têm direito à protecção da saúde [...]» (Lei Constitucional n.°l/ 97, de 20 de Setembro — cf. Constituição da República Portuguesa.) Este direito encontra-se constitucionalmente consagrado como um «direito fundamental», dentro da (sub)categoria dos «direitos fundamentais económicos e sociais» [segundo J. J. Gomes Canotilho, «a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais não se reduz a um simples apelo ao legislador. Existe uma verdadeira imposição constitucional» (cf. Direito Constitucional, 5.' ed., Coimbra, 1991, pp. 556 e segs.)].

Estabelece ainda a Constituição no n.° 2 do mesmo artigo:

Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado [...] garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação.

Este último enunciado implica o respeito pelo «princípio da igualdade», que, constitucionalmente, impede a discriminação sem fundamento objectivo de qualquer cidadão ou grupo de cidadãos (ou uma situação ou grupo de situações jurídicas) no quadro dos beneficiários das medidas legislativas implementadoras da garantia constitucional em questão. Citando Vital Moreira e outros:

O conceito jurídico-constitucional do princípio da igualdade tem vindo progressivamente a alargarle [...] O seu âmbito de protecção abrange na ordem contitucional portuguesa [...] a proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais [...] e a obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades. (Vital Moreira, et alii, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a ed., Coimbra, 1993, p. 127.]

A «proibição ao arbítrio» é um limite incontornável posto à actuação do legislador: a sua transposição fere a norma jurídica de «inconstitucionalidade material». Não havendo qualquer fundamento objectivo para a discriminação dos doentes mentais que está implícita na Portaria n.° 743 /93, do Ministério da Saúde, cabe perguntar, no remate deste breve excurso, se esta portaria é mesmo legal. Há infracção ao princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio, «quando os limites externos da 'discricionariedade legislativa' são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material» (ibidem, p. 127).

Pelo que temos vindo a verificar no que se refere à área da psiquiatria, as opções da Portaria n.° 743/93, do Ministério da Saúde, constituem discriminação sem qualquer fundamento objectivo. A injustiça que sancionam ê real, e não tem qualquer desculpa.

Em conclusão, se é certo que em abstracto um doente não pode exigir, por força da Constituição, que este ou daquele medicamento seja comparticipado de determinada forma, não é menos certo que o «direito à igualdade» lhe permite exigir que a comparticipação dos medicamentos seja atribuída em função de critérios objectivos, razoáveis e proporcionais.