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26 DE ABRIL DE 1989

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esse capital é para investimento e para progresso, mas trazendo consigo muitas dificuldades e muitos conflitos, que dificilmente se poderão ir superando.

Por outro lado, nem se podia falar de escolaridade para essa gente. Nesses grupos primitivos o sucesso escolar era pleno, e o sucesso humano mais pleno ainda, porque, quando hoje falamos do insucesso escolar, de facto, trata-se apenas de uma faixa, de um sector, de uma fatia de insucesso humano, é o insucesso humano observado na classe dos jovens ou na classe das crianças.

Por outro lado, foi preciso que se substituísse a essa fraternidade, a essa camaradagem plena de todos os homens do grupo, uma direcção autoritária, vamos dizer, alguma coisa que demarcasse os rumos e obrigasse todos os membros do grupo a cumprir aquilo que deviam. Mas alguma coisa de mais grave se passou, e é talvez isso que hoje pesa mais sobre todos nós: é que, em lugar de se esperar que cada dia fosse um dia plenamente outro, fosse alguma coisa que parecia inventada na hora, fosse uma criatividade continua de um ser, a que cada um dava o nome que lhe parecia mais conveniente, que estava mais de acordo com a sua maneira de existir e com a sua maneira de viver a vida, esse mundo, em lugar de ser alguma coisa sempre nova em cada dia que raiava, passou a ser, pelo contrário, alguma coisa que leva a maior parte dos homens a cumprir as tarefas que já cumpriram na véspera, que foram ensinados a cumprir, não vendo, de nenhum modo, a possibilidade de ser livres.

Então, para mim, o que parece agora já como sinal é que essa cultura ou essa civilização pode dar lugar a outra, pelas coisas que vão aparecendo no mundo e que, de vez em quando, parecem catástrofes, por exemplo, o desemprego; mas o facto é que há gente que não vai estar desempregada coisa nenhuma, o que acontece é que já não existem os empregos em que eles se podiam pendurar, como se pendura a roupa nos cabides, essa gente o que tem é tempo livre.

Está aparecendo no Mundo o inicio das gerações que vão ter diante de si um tempo livre. E um tempo livre para quê? Um tempo livre, não para aprenderem as receitas que nós todos aprendemos para podermos viver a vida, não tomando cuidado em entender bem e nos prepararmos para que, tendo-nos a vida sido dada de graça, temos de passar o resto dela ganhando-a e com que sacrifício! Então essa gente, que vai ter o sustento garantido, essa gente não vai ser deixada ao abandono e á fome. A economia, que até hoje tem sido, fundamentalmente, uma economia de produzir, vai ser uma economia de distribuir. E vejam lá quantos hábitos nossos têm de mudar quando pensamos que aquilo que produzimos é para ser vendido, é preciso ser dado a troco de qualquer coisa, e amanha vamos ter isso plenamente distribuído a todos.

Por outro lado, cada vez menos ao gosto de governos autoritários e cada vez mais ao gosto de que os governos sejam coordenadores de vontades de grupo ou de vontades individuais, cada um gosta de ver, de algum modo, reflectida nos governos — embora pensando que eles têm que atender a muitas vontades diferentes e a muitos diferentes interesses — alguma coisa do que é reflectido e cumprido. Detesta todo o governo que parece ser inteiramente contra ele, que parece estar governando apenas para o esmagar, apenas para o

levar a morrer sem nunca ter vivido plenamente, sem nunca ter sido, até ao fim, aquilo que nasceu e aquilo para que nasceu.

E, por outro lado, quanto ao que podemos chamar a metafísica, a visão que se pode ter daquela vida que não é garantida pela matemática — mesmo assim falível —, que não é garantida por aquilo a que chamamos a ciência, há gente que está procurando uma existência em que, de novo, o mundo seja imprevisível. E, quando pensamos nisto e olhamos o que foi fundamental na cultura portuguesa da Idade Média, até D. Dinis ou, como um esforço mais, até ao 1.° quartel do século xvi, vamos reparar no que se passa nas ilhas adjacentes, ou vamos reparar no que se passa, ainda com mais força, talvez com menos folclore, em muitas regiões do Brasil, e vemos que essa gente está apaixonada por que apareça para eles todos, para que brote dentro deles, mais do que lhes apareça de fora, uma metafísica que seja do imprevisível.

E, coisa curiosa, quando hoje se pensa na física, no princípio de Heisenberg, é que, depois de estudarmos muito bem como se vai produzir um fenómeno, esse fenómeno aparece sempre de uma forma diversa daquela que se tinha previsto; nessa altura começamos a ter a confiança em que, de facto, o Mundo é imprevisível. E alguma coisa de mais extraordinário ainda é perguntarmos se a nossa presença no fenómeno não faz que ele seja diferente, se não há em nós uma criatividade tão poderosa que, sem a podermos demarcar nitidamente por fórmulas matemáticas, essa nossa presença criativa vai modificar o fenómeno e faz com que ele apareça, o mais possível, com uma beleza que de novo se apresenta diante de nós, tendo estado séculos e séculos oculta.

O aparecimento dessa gente com tempo livre e todos os outros sintomas que encontramos pelo Mundo dão-nos a ideia de que essa cultura de séculos e séculos, em que estamos, mais do que criadores, prisioneiros, vai-se transformar, o que vai dar muito trabalho, vai ser uma navegação extremamente difícil junto da qual as duas navegações portuguesas — quer a navegação por mar, que é a que sempre se comemora, quer a mais extraordinária, a navegação por terra, que levou os limites do Brasil quase até aos Andes — não vão ser nada, quando comparadas com a navegação que nós todos temos de fazer.

Quando perguntamos onde estão os navios e quando perguntamos onde estão os marinheiros, temos de nos voltar realmente para Portugal, para as proezas extraordinárias que ele fez de criar um país que, na realidade, parecia impossível de criar e de o pôr como um cais de partida para a Europa, para o Mundo — já modificou o Mundo por duas vezes, provavelmente, modificará pela terceira, e modificá-lo-á num sentido que, provavelmente, vai ultrapassar a Europa e tudo o que a Europa espalhou pelo Mundo.

Reparai: afinal, toda a Europa se tem desenvolvido sobre dois princípios gregos, que se inventaram numa esquina — e, por isso, torno a falar na possibilidade de nos encontrarmos nas esquinas, talvez venha a ser produtivo, como foi para eles —, onde um filósofo interrogava gente que passava e discutia com os jovens, exactamente (e fez muito bem em discutir, embora isso,

por outro )ado, o tivesse levado à execução pela cicuta),