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II SÉRIE-C — NÚMERO 20

e outro traçava riscos no chão e construía a geometria, que deu toda a matemática moderna e possibilitou toda a ciência e toda a técnica de que nos servimos todos.

Alguma coisa, porém, ficou de parte, mais importante que a filosofia, mais importante que a geometria: aquele ideal de vida que o Grego tinha e que ele, por não o poder realizar na Terra, projectava num céu de poetas, num céu imaginário, povoado de deuses e de deusas que faziam o que queriam, com todo o tempo livre, pois que não havia tempo para eles, e todo o espaço percorrivel, porque na realidade, o espaço era apenas para os humanos que o imaginavam ou viam, não para eles próprios, e que Camões recorda aos Portugueses.

Precisamos todos de rever e reler Os Lusíadas de outra maneira, menos preocupados do que estivemos durante anos e anos em dividir as orações, que, provavelmente, o próprio Camões não sabia dividir. Temos de os ver como um poema que põe os Portugueses diante da proeza extraordinária que foi a da construção do País, que os põe perante a outra proeza extraordinária que foi a de levar os homens a terem conhecimento de um mundo no qual todos os continentes, que se julgavam soberanos, eram apenas ilhas de um imenso arquipélago, muito menos grande, no entanto, do que o mar que os rodeava. Apenas, talvez, uma terça parte do Mundo é dessas ilhas, o resto é mar e mar uno, que o Portugês desvendou e que devia ser o seu verdadeiro império.

O Português não nasceu para ter impérios de terra; o império do Oriente faliu, e faliu porque felizmente, o Português não tinha sentido administrativo.

Quando hoje muitos historiadores lamentam que os Portugueses não tenham ganho dinheiro com o império do Oriente, esquecem-se de que isso não era o mais importante para o Português. O mais importante para o Português era a aventura, o mais importante era o sonho e, depois de ter percorrido aquelas terras todas, a possibilidade de, bem abrigado num lugarzinho de Almada, escrever um dos livros mais extraordinários que existem no Mundo. E quantos outros teríamos se eles soubessem escrever como escrevia o Fernão Mendes Pinto? Lembremo-nos de todos os Gil Eanes que houve, de todos aqueles que, logo que podiam, fugiam ao serviço de el-rei, que os tinha enviado por mar e os tinha alimentado e lhes pagava soldo, fugiam ao serviço para correr a sua aventura individual.

Com o Brasil sucedeu diferente. O Brasil não foi uma falência, o Brasil aguentou-se. Os Portugueses, que não tinham capital de maneio nem nunca pensaram nisso para ir para o Oriente, encontraram no ouro de Minas Gerais o suficiente para que o império se aguentasse até à altura de ele ter a sua própria vida. Vida difícil, vida complicada, mas fazendo-se ao mesmo tempo uma política externa, ao que me parece, de toda a segurança, que garante ao mundo que, mesmo que por uma catástrofe extraordinária Portugal desaparecesse, o essencial da cultura portuguesa triunfaria, a começar pelo seu triunfo na América.

Quando falamos no problema ibérico, pensamos sempre que ê um problema que. vai daqui até à Catalunha, mas não é; é todo o problema das duas Ibérias do mundo: a de cá, tão pequena, apesar dos grandes feitos que praticou, e a de lá, toda aquela imensa península que vai do México ao cabo Horn e que só o

Brasil, só ele, tem lugar para que todos os países da

Europa ali possam caber e para que nós ainda, entre eles, tenhamos espaço para passear, contemplar e sonhar um mundo cada vez melhor.

Então parece-nos que, ao passo que essa Grécia, com a sua filosofia e a sua geometria, fez a Europa, lançou-a no Mundo e deu o que deu, apesar de todos os defeitos, Portugal teve uma sorte que a Grécia não teve: conseguiu um herdeiro. A Grécia nunca teve um Brasil, mas Portugal, tem um Brasil, e pode ser que aí haja as condições suficientes e plenas para que os Portugueses — porque o fundamental do Brasil é ainda a cultura portuguesa, apesar de todas as suas adjacências —, todos os portugueses, possam, por aí, ir ao Mundo.

Não se trata de fundar nenhum império, como tanta gente julga quando fala de António Vieira; trata-se de supor, de saber e de crer, acreditando e tendo vontade disso, que a cultura portuguesa é a tal da economia de convivência, que cada vez terá maior peso no Mundo, será cada vez mais poderosa no Mundo!...

Sonho com o dia em que todos os economistas tiverem que fechar os seus escritórios .. .

Risos.

... porque já não é preciso fazer a economia de coisa alguma, ou em que todos os médicos fechem os consultórios, porque a saúde venceu de tal maneira que as pessoas só quando forem atropeladas ou tiverem qualquer coisa dessa espécie é que terão de recorrer a qualquer espécie de medicina, e que haja por aí uma abertura enorme para que os homens se exprimam realmente naquilo que são.

Todos nós somos poetas, mas poetas limitados pela nossa vida, pelos nossos acidentes físicos; porém, temos aquela centelha da poesia extraordinária que faz-com que hoje todos os físicos declarem que o que há de fundamental no Mundo é alguma coisa a que nem podem dar o nome de «incriado criador», aquela coisa milagrosa e extraordinária de que ninguém pode sequer sonhar ver ou contemplar o aparecimento, alguma coisa indefenível que, nunca tenha sido criada ela própria, e a que cada um dará o nome que quiser, é, ela própria, plenamente criadora.

É essa centelha que tem de brilhar em nós, todos nós temos de cumprir o nosso destino de poetas, de criadores, seja do que for. E eu creio que ainda o máximo que podemos ver ao longe não é o criarmos poemas, criarmos esculturas ou criarmos teorias físicas ou místicas, é criarmos, cada um de nós, poemas, e, sendo poemas, sermos tão contagiosos que o Mundo não precise de escrever, nem de esculpir, nem de fazer matemática nenhuma, para que esse ambiente de poesia cubra o Mundo.

E, de todas as nações que me parecem que poderão ir por essa carreira, lembro-me de Portugal, se se conseguir re-instaurar, se se conseguir restituir a si próprio, depois de ter sabido transportar a Europa ao Mundo, no que foi entendido.

A Europa não podia ter chegado às três quartas partes do Mundo, que desconhecia, se não tivesse sido a navegação dos Portugueses, de Portugal, que, efectivamente, se espalhou pelo Mundo. Mas, agora não, para que continuemos sempre com a filosofia e com a geometria.