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26 DE ABRIL DE 1989

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Felizmente, a matemática está falindo, ou seja, porque ninguém mediu a cauda do Pi, aquilo que ficou, para apenas nós aproveitarmos um bocadinho e para fazermos facilmente os nossos cálculos, ou porque ainda não conseguimos encontrar, felizmente, a fórmula matemática do acaso, e isso serve muito bem para mascarar a nossa ignorância das leis profundas do Mundo, quando dizemos que por acaso nos sucedeu isto ou aquilo, por acaso encontrámos um amigo com quem queríamos falar ou por acaso escapámos de um grande perigo. Se tivéssemos essa fórmula matemática, saberíamos que nada foi por acaso, ou então chocaríamos de frente, plenamente, com essa ideia de que o importante no Mundo não é aquilo que se chama de determinismo, não é aquilo que se chama fatalidade, não é aquilo que se chama de o «ter de ser», é, efectivamente, o inventar a cada momento uma vida que valha a pena viver.

E, se essa criatividade for acentuada dentro de nós, efectivamente lá chegaremos, e ninguém se esqueça de que foi o povo português — reparem, um povo de analfabetos, de gente que, felizmente, tinha escapado a isso que se chama a instrução, ou, ainda pior, que se chama a educação, quando quase sempre é deseducação e plena —, foi esse povo o primeiro do Mundo a entender que o princípio de Heisenberg iria vigorar. Só séculos depois é que se estabeleceu isso no domínio da física, mas ele, no tal curso do pensamento, punha-o no domínio do realizável, no domínio daquilo que devia ser um dia. E o que devia ser um dia? O que sabeis: a coroação da criança como imperador do Mundo. E não é só da criança pequena, não, é daquela criança que nós matamos, que nunca deixamos ser conhecida pelo adulto.

O mais grave que toda essa educação faz em nós é que deixamos para trás a criança, com imensas saudades dela, mas sem possibilidade alguma de a recuperar. Talvez um dia, no Mundo, possamos avançar, possamos ser adultos sem ter eliminado a criança que havia dentro de nós, e é essa criança, paradoxalmente presente no adulto, que um dia tem de ser realmente o imperador do Mundo, sendo de tal maneira perfeita que não exerça sobre ninguém nem sobre alguma coisa qualquer espécie de império.

A outra ambição dos analfabetos portugueses é que um dia a vida quotidiana seria gratuita. Podia-se passar na boda do Espírito Santo e comer à vontade, sem se ter de pagar nem apresentar sequer uma licença do governo para se poder comer sopa ou bife, inteiramente à vontade, inteiramente gratuito. É evidente que não se trata só de comer —coisa que seria de tão boa prática para tanta gente da nossa terra e na terra do Mundo—, tem de se ter casa, tem de se ter roupa, tem de se ter calçado, tem de se ter toda a possibilidade de se não perder nenhum dos fenómenos que queiramos adoptar na vida.

Ainda por cima, esses portugueses iam à cadeia da terra e abriam as portas de par em par, coisa que o 25 de Abril devia ter feito a toda a gente. Muita gente no Mundo é vítima de revoluções, costuma-se dizer, como, por exemplo, às vezes, as cozinheiras são vítimas de golpes quando estão a preparar as batatas. Isso acontece, mas é uma pena que se não tenha tentado, que se não tenha dado a possibilidade de se reaver esse costume dos portugueses antigos de abrir as cadeias.

Mas como é? Soltar aqueles que se consideram criminosos? É evidente que não! Quando, no nosso tempo, se fala em cadeias abertas, refere-se àquelas casas onde o criminoso que o é, por um defeito genético, por culpa do DNA, digamos, ou por culpa das circunstâncias, se posssa reaver a si próprio e possa ser o poeta que tem de ser para si, para os outros e para o Mundo. Então o 25 de Abril ia ao mesmo tempo reparar situações.

O 25 de Abril é uma data para todo o Mundo, porque todo ele está a passar dessa nossa cultura para outra, que levará séculos e séculos a chegar, nem podemos fazer qualquer cálculo. Só ilimitado é o nosso sonho e, ao mesmo tempo, é preciso é que cada homem sonhe plenamente aquilo que lhe parece desejável no Mundo e, simultaneamente, seja capaz de toda a objectividade da matemática, na medida em que esta é ou pode ser objectiva para isto ou aquilo que queremos calcular.

Por outro lado, essa ligação entre o sonho e a objectividade, a audácia para todo o passo e o cuidado com cada passo, seguindo o exemplo daqueles homens que foram de caravela, milha a milha, légua a légua, ao longo de uma costa, lançando-se ao golfão, passando às terras de ocidente —América do Sul, América do Norte e talvez, segundo parece, à América Central—, e foram, no entanto, olhando isso e navegando sempre com a maior atenção aos instrumentos científicos, àquilo a que se chamava os instrumentos matemáticos, nunca se entregando inteiramente à sua audácia e imaginação, mas levando ao mesmo tempo tudo quanto era preciso de cálculo, de prudência e de gosto de observação, porque nisso se tinha educado, e muito, o Português.

Reparem, foram os analfabetos portugueses, porque olhavam o Mundo em cada um dos seus pormenores e o tomavam no seu conjunto, que conseguiram abater o império de Aristóteles; não me refiro à metafísica, mas sim à física de Aristóteles, e fizeram surgir toda a ciência moderna. Se hoje a Europa ou a América são o que são culturalmente, uma vontade no produtivo Japão, se toda essa gente se lançou nisso, se lançou a esse trabalho de, ao mesmo tempo, ter um sonho e objectividade, é isso o que se tem de fazer para que o mundo futuro possa sorrir.

De nós todos, que somos os mais antigos do planeta, certamente também, porque temos experiência de alguma coisa que foi importante, temos experiência de períodos que se passaram em Portugal. O 25 de Abril terminou —e também para todo o Mundo— com alguma coisa que era dispensável no Mundo.

Sei pouco de história, mas sei ainda menos do que se passa no interior da história. Como é a máquina da história? Quando condenamos tal ou tal acontecimento, sabemos se ele foi ou não produtivo, mas não sabemos, na realidade, o porquê nem o para quê. Então o que apenas podemos dizer é que Portugal passou por um período explicável, talvez. Talvez! O período a que chamamos a ditadura e que termina exactamente a 25 de Abril talvez ele venha na altura em que o príncipe D. João embarca para o Brasil e o único remédio para as pessoas que pensavam mais longe, que estavam mais dentro do futuro do que a maioria dos habitantes de Portugal, foi embarcar com ele e irem fazer no Rio de Janeiro, em São Paulo ou na Baía aquilo que não tinham podido realizar em Portuga).