em termos de ambulatório ou da nossa ligação às instituições psiquiátricas, vamos tendo conhecimento da descompensação psicopatológica de determinados doentes, cuja necessidade de pôr em prática um tratamento é, de facto, porventura, uma das formas de defesa da própria situação desses doentes. Lembro aqui casos que são conhecidos e que, publicamente, têm sido divulgados do desfecho fatal quer para terceiros, relativamente a indivíduos perturbados do ponto de vista psicopatológico, quer inclusive daquilo que são as agressões de que eles próprios são vítimas - e este caso de Quebradas, do linchamento daquele doente mental, é exemplo paradigmático desta situação.
A psiquiatria tem tido, e penso que todos nós, os que aqui estamos, de uma forma ou de outra, relativamente a estes trabalhos, desta relação com a justiça, alguma prudência no sentido de, perante a necessidade, essa lei ter de acautelar, por um lado, esta defesa dos direitos e das liberdades individuais e, por outro, a protecção do todo social. Penso que os psiquiatras, ao defenderem também esta necessidade da lei, não perderam de vista a prudência das cautelas que hão-de ser necessárias nesse texto legal que possa vir a tratar deste assunto. O que, a meu ver, há - e reforço esta ideia - é um consenso quanto à grande necessidade de haver uma lei de saúde mental entre nós, e penso que somos dos poucos países da Comunidade que não temos uma lei de saúde mental. A Lei n.º 2118, de 3 de Abril de 1963, era uma boa lei, penso até que tem sido, no seio deste Grupo de Trabalho, uma boa base, um bom ponto de partida para as discussões que temos tido, mas é verdade que, quanto aos conceitos, e cabe-me também aqui, nesta intervenção, dizê-lo, há alguma coisa que está desactualizada.
Também gostaria de deixar aqui este testemunho: hoje, felizmente, a psiquiatria não é a psiquiatria dos anos 50 ou dos anos 60, mesmo aquela que é feita em hospitais psiquiátricos. Hoje, temos um leque de opções, em termos de intervenção terapêutica, que nos permite lidar com a doença mental, principalmente naquilo que era convencionalmente designado por psicoses e que poderíamos traduzir aqui por doenças da realidade, onde a nossa intervenção, seja ela do ponto de vista psicofarmacológico, seja ela no sentido psicoterapêutico e na perspectiva da reintegração desses doentes, tem mecanismos que são bem diferentes daquilo que se passava há uns anos atrás.
Perante esta proposta, que também foi discutida e consensualmente aceite no seio deste Grupo de Trabalho, reforço esta designação de portador de anomalia psíquica para fugirmos a este estigma, a este rótulo de doente mental. É, aliás, uma terminologia adoptada noutros ordenamentos jurídicos entre nós - e, a meu ver, bem -, porque é suficientemente amplo. E, permitam-me este parêntesis, é preciso que haja esta discussão, este confronto, o que, em minha opinião, tem faltado, entre médicos e psiquiatras e os juristas no sentido de darmos conta das nossas angústias, das nossas dificuldades, no lidar com determinado tipo de situações, que estão, enfim, a necessitar deste fundamento legal.
O conceito de portador de anomalia psíquica definido à luz daquilo que são as classificações internacionais, seja a classificação internacional das doenças da Organização Mundial de Saúde, seja a classificação americana, que, de alguma forma, utilizamos (são textos que utilizamos na nossa prática clínica), permite-nos falar quer dos transtornos quer dos distúrbios e não tanto de doença, que é uma designação que hoje, na prática, tem menos sentido do ponto de vista classificativo.
Para já, era isto que eu pretendia dizer, e termino com o reforço da ideia com que o Sr. Dr. Dantas terminou a sua intervenção a propósito desta "perigosidade" pré-delitual, que não colhe para efeitos de aplicação de medidas de segurança, e da necessidade urgente de podermos, do ponto de vista da intervenção, na tal perspectiva do tratamento, seja ele em regime de internamento, seja ele em regime ambulatório, dar também resposta a essas situações.
Se o Sr. Presidente o permitir, gostaria de pedir aos Srs. Drs. Jaime Milheiro e Jorge Costa Santos para completarem aquilo que eu disse.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. Jaime Milheiro.
O Sr. Dr. Jaime Milheiro (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, não sei se vale a pena nesta altura, talvez depois, se houver algum tipo de debate ou discussão. Nessa altura, gostaria de intervir, naturalmente, mas, agora, creio que já foi dito o fundamental.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. Jorge Costa Santos.
O Sr. Dr. Jorge Costa Santos (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, não quero de forma alguma repetir aquilo que foi dito pelos oradores que me antecederam, e estou rigorosamente de acordo com o essencial do que foi dito.
Ainda assim, gostaria de enfatizar este aspecto, que é importante: o drama (não direi que se trate, necessariamente, de um drama quotidiano mas que, ainda assim, tem o seu quê de drama) de situações que, com muita frequência, acontecem nos serviços de urgência hospitalares, nomeadamente naqueles que têm urgência psiquiátrica, em que os médicos se vêem perante um doente portador de uma anomalia psíquica grave, que está desrealizado, que está numa situação de corte ou de ruptura com o real, que não tem consciência do seu estado, que recusa o internamento, e, para nós, médicos, é evidente que ele não reúne condições, capacidade de discernimento, juízo crítico para decidir - todavia, recusa-o -, e eu diria que a atitude do médico perante uma situação destas passa muito pelo médico e pelo estabelecimento hospitalar. Por outras palavras, nesta área reina uma discricionariedade que me parece claramente indesejável, perturbadora do funcionamento das instituições, lesiva da responsabilidade dos médicos e também da comunidade. Existem casos, que eu diria suficientemente elucidativos e que foram largamente divulgados pela imprensa, de doentes mentais que, nestas situações de descompensação ou de surto, foram tratados no contexto da urgência, que, por terem recusado o internamento, foi-lhes concedida alta e cometeram crimes graves, alguns de homicídio, na sequência imediata deste tipo de situações.
Usei da palavra apenas para colocar esta tónica e, de alguma forma, reforçar aquilo que foi dito, pondo-vos perante situações concretas do quase quotidiano ou que, pelo menos, com alguma frequência ocorrem no contexto de urgência, não apenas no contexto de urgência hospitalar, porque estas situações podem configurar-se fora das urgências hospitalares.
Era esta a mensagem que eu queria deixar.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, acabam de ouvir os membros do Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental. Como se aperceberam, é um Grupo composto por juristas, o Dr. Jorge Costa, o Dr. António Leones Dantas e a Dr.ª Maria João Antunes, e por psiquiatras, o Dr. Francisco Santos Costa, o Dr. Jaime Milheiro e o Dr. Jorge Costa Santos, todos de institutos de psiquiatria e de instituições de saúde públicas, e, tal como anunciaram, fazem uma formulação alternativa para a proposta que o PS apresentou para a alínea f) do artigo 27.º. Assim, onde o PS propõe "o internamento de doente mental