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SEPARATA — NÚMERO 70

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(por exemplo, edição ou design gráfico), e as plataformas cujo trabalho é necessariamente territorializado, dado

que exige a co-presença física com o cliente, como acontece com os motoristas ou os estafetas.

Portugal foi, curiosamente, um dos primeiros países do mundo a fazer uma lei específica para o trabalho nas

plataformas, mas apenas para um sector particular. Fê-lo através da Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto. À

semelhança do que sucedeu nos outros pouquíssimos países que fizeram legislações específicas, enquanto

ainda se fazia o debate nos tribunais em vários países sobre o tipo de relações laborais estabelecidas com as

plataformas, a lei portuguesa assumiu uma orientação neoliberal, à medida dos interesses de plataformas como

a Uber. Do ponto de vista das relações de trabalho, o enquadramento que foi aprovado por acordo entre PS,

PSD e CDS-PP teve a originalidade de considerar, além dos três sujeitos que intervêm neste tipo de atividade

(o trabalhador; a plataforma; o cliente), um quarto sujeito, o «operador de TVDE». Assim, a lei logrou libertar as

plataformas digitais (Uber, Bolt, Free Now e It's my Ride, os quatro que atualmente operam em Portugal) de

quaisquer compromissos contratuais em relação aos motoristas, impedindo o estabelecimento de relações de

trabalho entre os motoristas e a plataforma e obrigando à intermediação de um terceiro agente, o tal «operador

de TVDE».

Não se sabe ao certo quantos dos 8880 operadores de TVDE, isto é, das empresas que contratam os

motoristas, são na realidade empresas ou, ao invés, os próprios motoristas empresarializados. Também não se

sabe quantos contratos de trabalho existem, embora as inspeções da ACT indiquem um elevado grau de

incumprimento da lei. De facto, esta figura do «operador de TVDE» é um artifício para esbater, no modo como

se organiza a atividade, a ligação contratual que existe entre o motorista e a plataforma digital. Por outro lado,

não obstante os limites definidos pela Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, relativamente aos horários de trabalho,

o facto é que as jornadas diárias de trabalho rondam, de acordo com os sindicatos, cerca de 14 horas diárias

em média, dado que dificilmente um motorista consegue um rendimento que lhe permita sobreviver se estiver a

trabalhar um período inferior àquele. Os conflitos relativos às taxas cobradas pelas plataformas têm sido,

também, uma constante neste setor desde então.

Em termos jurisprudenciais, até ver, não existem decisões relativas a estafetas que trabalham com

plataformas digitais em Portugal e à qualificação da sua relação laboral. Em termos de debate político, o Governo

entendeu, contudo, realizar um «Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho», cuja coordenação científica ficou a

cargo dos professores de Direito do Trabalho Guilherme Dray e Teresa Coelho Moreira. A versão preliminar

deste «Livro Verde», apresentada em junho de 2021, tinha uma caracterização sobre a realidade das

plataformas digitais e um conjunto de linhas de ação. Nalguns casos, essas linhas parecem remeter para um

enquadramento contributivo e fiscal próprio, à parte do que se aplica às restantes empresas, e para o

estabelecimento de direitos de proteção social independentes da qualificação contratual, isto é, aplicáveis aos

trabalhadores mesmo que estes mantenham uma situação de verdadeiro trabalho independente ou de «falsos

recibos verdes», o que poderia ser concretizado pelo tal «terceiro estatuto», à imagem do que foi criado em

França ou na Colômbia. Por outro lado, na linha da jurisprudência que reconhece o direito destes trabalhadores

ao contrato de trabalho, os coordenadores científicos do livro inscreveram nesta versão a proposta de «Criar

uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva

a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria, sublinhando que a

circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar

dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a

existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital». Trata-se de uma

recomendação muito relevante. No Plano de Recuperação e Resiliência atira, todavia, qualquer intervenção

deste tipo para 2022. O «Livro Verde» identifica ainda explicitamente a necessidade de rever a «Lei Uber», muito

embora não explicite em que sentido nem assuma o compromisso de revogar a bizarra e dispensável figura do

«operador de TVDE». E sinaliza a necessidade de «regulamentar a utilização de algoritmos, nomeadamente na

distribuição de tarefas, organização do trabalho, avaliação de desempenho e progressão, em particular no

âmbito do trabalho prestado através de plataformas».

Entretanto, a proposta apresentada pelo Governo na Comissão Permanente de Concertação Social, em julho

de 2021, e agora reiterada, representa uma dupla inflexão relativamente ao «Livro Verde sobre o Futuro do

Trabalho» e uma cedência ao lóbi feito pelas confederações patronais e pelas multinacionais como a Uber nos

últimos meses. A referência à «salvaguarda de regimes legais específicos» é o modo de se anunciar a

manutenção da «Lei Uber» para os TVDE, recuando em relação ao que o «Livro Verde» parecia apontar. A