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3156 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

para avaliar e julgar as condições da construcção, mas não entreguemos o cidadão manietado a uma alçada de médicos!
A constituição e as leis estabeleceram o processo pelo qual o cidadão póde ser privado dos seus direitos; e dos seus direitos individuaes ninguém póde ser privado, senão por sentença das justiças administrativas ou judiciaes, que têem e conhecem a responsabilidade das suas augustas funcções.
Agora um conselho de medicos, sem responsabilidade legal, transformado numa verdadeira alçada para privar, sem recurso de especie alguma, o cidadão dos seus direitos individuaes no que elle tem de mais sagrado e inviolavel, não é doutrina que se acceite em paiz civilisado.
Que inconveniente ha em que as questões relativas às construcções particulares sejam resolvidas nos tribunaes? Pois os tribunaes servem para todos, e até para o estado, e só não servem para a camara municipal de Lisboa?
Eis-aqui uma das grandes bellezas da descentralisação á moderna!
Aqui temos um exemplar de descentralisação, que representa a absorpção dos direitos individuaes por uma alçada, que na proposta do governo era desempenhada pelo subdelegado de saude, e que no parecer das commissões fica a cargo do conselho de saude e de hygiene do bairro.
Mas ainda ha mais e melhor.
Reparem os meus illustres collegas no artigo 76.° da proposta do governo e 71.° do parecer das cominissões, e ahi encontrarão a seguinte belleza:
"Artigo .° De todas as resoluções do conselho geral de saúde e hygiene ácerca de habitações particulares insalubres cabe recurso com effeito suspensivo, interposto até dez dias da data da intimação das mesmas resoluções, para a camara municipal, cujas decisões serão definitivas.
"§ unico. A intimação administrativa das decisões definitivas, ou como tal havidas por falta de recurso em tempo opportuno, sobre habitações insalubres, deverá sempre determinar a natureza das obras, não podendo a habitação ser alugada ou occupada por alguém emquanto as referidas obras não forem realisadas.
A camara municipal manda intimar o cidadão para effectuar as obras, que ella lhe prescreve e determina, na habitação que ella reputa insalubre; e, se o proprietário não faz logo essas obras, é posto no andar da rua, sem poder habitar ou alugar a casa emquanto as obras não estiverem effectuadas!
Ao menos não lhe é prohibido ficar á porta da rua, muito socegado, e ao ar livre! (Riso.)
V. exas. já viram disposição tão extravagante? (Apoiados.)
Está-me agora a lembrar que em 1867, quando começou a predominar a philosophia transcendente na formação das leis em Portugal, entregou-se por lei a um engenheiro distincto, e homem muito entendido, a administração dos campos do Mondego, pagando, já se vê, os proprietários as respectivas despezas.
Dizia-se que os campos continuavam a ser dos proprietários, e effectivamente ficaram condominos os proprietarios e o engenheiro.
Mas ao menos por essa lei marcava o engenheiro as obras que os proprietarios haviam de fazer; e, se elles as não faziam, fazia-as o engenheiro, pagando elles depois a respectiva conta.
Era uma administração um pouco communista, mas era em todo o caso uma administração.
Agora pelo projecto sujeito ao exame da camara vae para a rua o proprietario, sem obrigação de fazer as obras, e sem ninguem as fazer por elle, ficando-lhe as das livres para passeiar, e com o unico encargo de não pôr pé dentro da casa, que é sua!
Emquanto não estiverem feitas as obras ordenadas pela camara municipal em prédio, que não é d'ella, mas de seu dono, é inteiramente livre ao proprietario dormir em toda a parte, e até ao ar livre, menos na casa que lhe pertence!
É muito bonito, e sobretudo muito original!
Aqui está uma disposição de alta philosophia, e que transcende todas as raias do mais fino idealismo!
Não ha de certo em Lisboa duzentas casas que os doutores da medicina não possam declarar em estado de insalubridade. Se a camara municipal, armada desta faculdade suprema, se lembrasse de pôr no andar da rua todos os municipes, cujos predios precisassem de obras para se tornarem salubres, não os deixando voltar a habitar as casas emquanto as obras não estivessem concluídas, ficariamos quasi todos a gosar o fresco ao ar livre. (Riso.) Ao menos estabeleçam o preceito de que a camara municipal não poderá exercer esta faculdade, senão no verão, para não ficarmos tão mal! (Riso.)
Assim como as nossas leis protegem a caça e a pesca contra a ignorancia e contra as ambições do caçador e do pescador, não permittindo a caça nem a pesca em certas epochas do anno, lembre-se o parlamento de proteger tambem o lisboeta contra as invasões da camara municipal durante o inverno, ao menos, durante o tempo do frio! (Riso.)
Já me contento com que seja prohibido á camara municipal ir de inverno caçar o cidadão a casa d'elle, para o pôr no andar da rua, emquanto elle não fizer na casa as obras, pela mesma camara indicadas, que deixem o predio um modelo de salubridade.
A camara municipal de Lisboa esteva até para ficar com o direito de conceder as licenças para os estabelecimentos insalubres, incommodos e perigosos. Dava-lhe essa faculdade a proposta do governo, que as commissões com rasão alteraram n'esta parte.
O pensamento fundamental do projecto é fazer da camara municipal de Lisboa um estado no estado e realmente a camara municipal de Lisboa administra-se tão bem, que por mais attribuições que lhe dêem, tudo é pouco!
Mas, pergunto eu á assembléa, poderá ficar lei do paiz uma disposição que auctorisa a municipalidade a expulsar o cidadão de sua casa, a pretexto de que o predio precisa de obras para ser salubre, e a não o deixar mais habitar o predio emquanto essas obras não estiverem concluídas?
Esta disposição, que em face dos principios de direito e do bom senso ninguem comprehende, nem é centralisadora nem descentralisadora! Não se lhe póde dar nome! Basta dizer que entrega a uma corporação administrativa o direito de expulsar o proprietario de sua casa, a qual, pela constituição, lhe é asylo inviolavel!
Se pois, o conselho de saude e de hygiene tiver a feliz lembrança de percorrer predio por predio, e não encontrar nenhum perfeitamente salubre, para o que não precisará de grande trabalho, corre a população de Lisboa o risco de ser obrigada a sair toda de casa e a ir bivarar no campo!
O municipio de Lisboa não sabe de certo de tantos beneficios que este projecte lhe dispensa!
Agora os proprietarios de predios em Lisboa passarão definitivamente da categoria de proprietarios effectivos á categoria de proprietarios de honra.
Já por um celebre regulamento, que para ahi se publicou em 1881, o senhorio de todas as propriedades urbanas de Lisboa era a companhia das aguas. O estado, a junta geral, e mesmo as juntas de parochias tem tambem já quinhão nos predios.
Agora passa o resto do dominio para a camara municipal ! Ficámos assim nós os senhorios mais descentralisados !... (Riso.)
Sr. presidente, a descentralisação deste projecto cifra-se toda em arrancar os direitos individuaes aos cidadãos para os pôr aos pés da auctoridade publica. Era tal a vontade e o apetite de fazer descentralisação d'este genero, que até nos foram tirar o direito de caça e de pesca, reconhecido no codigo civil, e já no direito anterior. Forte mania de descentralisar !...