SESSÃO N.° 33 DE 3 DE AGOSTO DE 1908 9
Sr. Presidente: este Governo tem o deploravel sestro de atraiçoar os mais nobres pensamentos de El-Rei.
Assim, na concessão da amnistia, inutilizou os generosos intuitos do Soberano, por não ter a coragem e a envergadura necessarias para fazer bem e opportunamente o que só tarde, mal e incompletamente praticou, com tal inhabilidade que nem soube, por esse acto de demencia ou antes de justiça, conquistar para o Monarcha as sympathias que lhe eram pessoalmente devidas, e que lhe teriam ficado certamente asseguradas, se se houvesse procedido com melhor comprehensão da alma popular, que prontamente se enternece e enthusiasma perante qualquer acto de real magnanimidade.
Agora, estragou um rasgo de verdadeira isenção de El-Rei, submettendo-o á sancção parlamentar, em termos que não são de receber.
Effectivamente, El-Rei pode ter manifestado o desejo, muito louvavel, de que, no presente reinado, se restringisse o numero de palacios que, nos reinados anteriores, teem sido destinados, pelas Côrtes, ao recreio e decencia do Soberano; e essa declaração do nosso joven Monarcha devia constar do relatorio, para que a lei, redigida nessa conformidade, não parecesse usar de menos generosidade e cortesia para com o Senhor D. Manuel, do que as que se dispensaram aos seus antecessores.
Mas o que Sua Majestade não pode ter dito, como parece deprehender-se do artigo 2.° do projecto, é que cedia, para ficarem pertencendo á Fazenda Nacional, e encorporados nos proprios d'ella, os Paços de Caxias e Queluz, com suas dependencias, porque esses palacios já se acam encorporados de ha muito na Fazenda Nacional, e não estão presentemente na posse e usufruto da Coroa, que só por esta lei lhe podem ser dados de novo.
Assim, segundo a original maneira de dizer do Governo, a Casa Real cede antecipadamente á nação, pelo artigo 2.°, os palacios que lhe não pertencem, e que só por esta lei lhe poderão ser destinados.
É o caso da pescada, que já o era antes de o ser.
Tudo isto deve parecer um enygma aos que me escutam; mas eu vou procurar decifrá-lo com toda a clareza.
A Casa Real disfruta duas ordens de palacios:
1.ª Os palacios de que reza o artigo 80.° da Carta Constitucional:
Os palacios e terrenos reaes que teem sido até agora, possuidos pelo Rei ficarão pertencendo aos seus succesisores, e as Côrtes cuidarão nas acquisições e construcções que julgarem convenientes para a decencia e recreio do Rei.
Até agora, quer dizer, até 29 de abril de 1826, data da outorga da Carta Constitucional.
Ora quaes eram os palacios e terrenos reaes possuidos até então por El-Rei D. João VI, que morrera pouco antes, em 10 de março de 1826?
Di-lo a carta de- lei de 11 de julho de 1821, que fixou a dotação de D. João VI, no seu artigo 3.°:
Artigo 3.° Ficam designados para habitação e recreio de El-Rei os palacios da Ajuda, Alcantara, Mafra, Salvaterra, Vendas Novas e Cintra, com todas as quintas e tapadas que lhes são annexas.
Taes são, pois, os palacios que pertencem hoje a El-Rei D. Manuel, nos termos do artigo 85.° da Carta Constitucional, como successor, que é, de D. João VI.
2.ª Mas a Casa Real tem tambem disfrutado, alem d'esses, alguns palacios da Casa do Infantado.
Vejamos como, e em que condições.
A Casa do Infantado foi instituida por El-Rei D. João IV a favor do seu segundo genito e do segundo genito dos seus successores, com bens que sairam da Coroa, não por concessão particular sob qualquer titulo, mas para um fim altamente politico e de interesse publico, qual era o de melhor assegurar a successão da Coroa de Portugal na familia de Bragança, evitando se assim qualquer pretexto para a repetição do que acontecera em 1580, quando Filipe II de Castella, allegando o seu supposto direito de successão, mandou occupar Portugal por um grande exercito, sob o cominando do Duque de Alba.
A Casa do Infantado veio, pois, a pertencer a D. Miguel, na sua qualidade de segundo genito de D. João VI; mas, sobrevindo a luta entre D. Miguel e D. Pedro, este, como regente em nome da Rainha, publicou em 18 de março de 1834 dois decretos:
No primeiro destituia e exautorava o Infante D. Miguel, usurpador da Coroa da Rainha, de todas as honras, prerogativas, privilegios, isenções e regalias que na qualidade e pelo titulo de Infante lhe pertenciam, declarando que não podia mais ser tratado ou nomeado tal nestes reinos.
No segundo decreto, consequencia logica do primeiro, foi extincta a Casa do Infantado, acrescentando-se no artigo 2.°:
Artigo 2.° Os bens da extincta Casa do Infantado ficam pertencendo á Fazenda Nacional e encorporados nos proprios d'ella; porem, os palacios de Queluz, da Bem posta, do Alfeite, de Samora Correia, de Caxias e da Murteira, casas, quintas ti mais dependencias d'elles, são destinados para decencia e recreio da Rainha, como os palacios e terrenos de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional da Monarchia.
Assim, todos os bens da Casa do Infantado ficaram pertencendo, e ainda hoje pertencem, a despeito do que diz o actual Governo, á Fazenda Nacional; mas alguns d'elles foram destinados para decencia e recreio da Rainha, só da Rainha D. Maria II, e não dos seus successores.
Tanto assim é que, tendo fallecido esta Soberana, e succedido no Throno o Senhor D. Pedro V, foi necessario renovar, em favor do novo Monarcha, a concessão que tinha sido feita a Sua Augusta Mãe.
Effectivamente, a lei de 16 de julho de 1855 declara logo no seu artigo 1.°:
Artigo 1.° No presente reinado do Senhor D. Pedro V continuará em vigor a disposição do decreto de 18 de março de 1834, que assinou á Coroa os palacios e terrenos nacionaes nelle designados.
Como se vê a concessão foi renovada, mas só para o reinado de D. Pedro V, e extinguiu-se por morte d'este.
A lei de 11 de fevereiro de 1862, que fixou a dotação do seu successor L). Luiz I, renovou ainda a concessão, mas tambem só para o seu reinado, porque no artigo 2.° diz:
«Artigo 2.° São declaradas em vigor no presente reinado as disposições da lei de 16 de julho de 1855».
E finalmente a lei de 28 de junho de 1890, que fixou a dotação de El-Rei D. Carlos, reproduz esse mesmo artigo sob o n.° 5, a saber:
Artigo 5.° São declaradas em vigor no presente reinado as disposições da lei de 16 de julho de 1855.
Em conclusão, os palacios da extincta Casa do Infantado poderão neste momento continuar na posse da Casa Real mas essa posse é illegal desde o dia 1 de fevereiro, porque o decreto de 18 de março de 1834 a restringiu ao reinado de D. Maria II; a lei de 16 de julho de 1855, ao reinado de D. Pedro V; a lei de 11 de fevereiro de 1862, ao remado de D. Luiz I; e a lei de 28 de junho de 1900, ao reinado de D. Carlos I.
E tanto assim o entendeu o Governo, que lá inscreveu neste projecto de lei o artigo 6.°, que diz assim:
Artigo 6.° Continuam em vigor, no actual remado, as disposições da carta de lei de 16 de julho de 1855, em tudo que não for especialmente derogado pela presente lei.
Por isso, se é por este artigo da lei que os palacios do Infantado podem ser postos, no actual reinado, á disposição de El-Rei, como é que no artigo 2.° se declara que El-Rei cede os palacios de Queluz e Caxias, que nem lhe pertencem, nem estão na sua posse legal?