10 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
pressos do artigo 3.° e § unico da citada lei de 16 de julho de 1805, os bens da Coroa declarados nos artigos antecedentes (que são todos aquelles predios) podem ser arrendados, excepto os jardins de recreio e os palacios destinados a residencia ou recreio do Rei.
Isto é tambem reconhecido no artigo 19.°, § unico, alinea a), de execução permanente, (da citada lei de 12 de junho de 1901. É o direito constituido.
E d'aqui é forçoso inferir-se que todos os predios pertencentes á Coroa, com excepção dos jardins de recreio e dos palacios de residencia ou recreio do Rei, podem ser dados de arrendamento pela Casa Real, seja a quem for e até ao proprio Estado, visto que tal faculdade não tem limitação alguma.
O melhor direito a constituir seria fixarem-se nesta lei, que estamos elaborando, os determinados palacios, jardins, parques e. mais dependencias d'elles, destinados a residencia e recreio do Rei, que os não poderia arrendar.
Assim os palacios da Ajuda, Necessidades, Cascaes, Pena, Mafra e suas dependencias, excepto a parte d'este ultimo palacio presentemente occupado em diversos serviços publicos, seriam bastantes para isso.
E os mais predios da Coroa, comprehendidos no artigo 85.° da Carta ou vindos do Infantado, ficariam definitivamente no pleno dominio da nação.
O decreto de 30 de agosto de 1907 referiu-se apenas a adeantamentos a descoberto feitos pelo Ministerio da Fazenda em virtude de despachos dos ulmos Governos.
Haveria, porem, outros adeantamentos feitos encobertamente á Casa Real?
Não o sei, e devo mesmo crer que os não houve.
A proposito, todavia, de um regime de adeantamentos de tão variadas especies, durante o qual os dinheiros publicos eram considerados, em regra, roupa de franceses, não será excesso de zelo investigar a tal respeito.
E o artigo 5.° do projecto autoriza manifestamente essa investigação.
Relativamente a despesas encobertas da administração publica quero lembrar á Camara umas eloquentes palavras de Hintze Ribeiro, proferidas na sessão d'esta Camara, de 18 de junho de 1888. Dizem assim:
Mas então por onde sae todo o dinheiro que se gasta sem que o Parlamento o vote? Altos mysteriou da orçamentologia.
As despesas a mais saem, provavelmente, do mesmo cofre de onde sairam as que se fizeram por occasião da visita do Rei da Suecia, e por occasião do casamento do Principe Real.
Nem os orçamentos nem as contas do Thesouro dão noticias d'ellas. Todos as vêem... mas ninguem as conhece.
A Camara ouviu bem? Tocos as vêem, mas ninguem as conhece.
Estas palavras são tão dignas da boca de ouro de um grande orador, como podiam ser escritas pelo calamo de Tacito.
O que ellas, porem, revelam sobre tudo é um systema de administração, que de illegalidade em illegalidade, de mystificação em mystificação, de abuso em abuso, de esbanjamento em esbanjamento, de loucura em loucura, a passo breve e a passo largo, em carreira moderada e em carreira vertiginosa, nos levou á desgraçada situação em que nos encontramos, feita das vergonhas do passado, das tristezas do presente e dos pavores do futuro.
Que a commissão burocratica inquira bem, inquira de tudo com escrupulosa lealdade; e só d'esse modo cumprirá honesta e patrioticamente a sua elevada e difficil missão.
Estou naturalmente chegado ao termo da minha modesta oração.
Na trajectoria da civilização ha sempre alternativas de claridade e de sombra, nuvens que a escurentam, e irradiações luminosas que a douram.
Da ultima ditadura direi, sem odio a ninguem, que ella com a serie inteira das suas desvairadas medidas liberticidas, com todos os seus bufos e mouchards, com os seus violentos processos politicos, era um horrivel delirium tremens, que tinha de acabar fatalmente por uma revolução ou por um crime, uma grande mancha negra na historia politica de Portugal.
Essa ditadura não acabo n por uma revolução, porque a revolução abortou na noite de 28 para 29 de janeiro de 1908, mas acabou por um crime horroroso na tragica tarde de 1 de fevereiro do mesmo anno.
Como, porem, a humanidade sempre caminha através daquellas alternativas de luz e de sombra, imaginei que a terrivel sangueira de 1 de fevereiro, mesmo porque foi' terrivel, seria o inicio de uma era nova, o ponto de partida para uma mudança radical na politica portuguesa, em que o amor do bem publico, o respeito da lê: e dos principios, e o culto da liberdade e da justiça substituissem, com outros homens e até com os mesmos homens, o velho regime, que com as suas praticas abusivas e obnoxias levou o país ao extremo em que se encontra.
Sobretudo o respeito da lei! Sou um fervoroso crente nos grandes resultados benéficos do respeito da lei, em tudo e por parte de todos, de alto a baixo, desde a suprema altura social até a ultima camada humana.
Infelizmente, porem, os factos ainda não confirmaram por completo aquella minha, previsão optimista.
Na politica portuguesa observam-se ainda os mesmos processos tortuosos e emmaranhados, os mesmos egoismos crus, os mesmos erros funestos, as mesmas habilidades desacreditadas e as mesmas illusões fataes, que são outros tantos sinaes de mau agouro.
E comtudo era facil mudar isto para bem, enveredando pela estrada larga, lisa e luminosa da verdade. Bastava que Rei, Governo e Parlamente cumprissem todos o seu dever. Menos até: se apenas uma qualquer d'essas tres entidades estivesse firmemente no seu logar, ella seria sufficiente por si só para obstar a administrações ruinosas, como as que teem feito a nossa desgraça.
Não se collocando, porem, nem o Rei, nem o Governo, nem o Parlamento no seu logar, bem poderá acontecer, como muitos receiam, que em breve isto nem seja Monarchia, nem Republica, mas sim puro Egypto, para honra e gloria de todos os fautores dos erros que de longe vêem.
Não me permitto dar conselhos á Monarchia; mas, apreciando serenamente as occorrencias, parece-me que a melhor propaganda, a propaganda verdadeiramente racional, que ella pode fazer no seu interesse, é a pratica de uma politica justa e francamente liberal, elevada e digna, e de uma administração firme e escrupulosamente honesta, cumprindo e fazendo cumprir as leis, respeitando os direitos de todos e de todos exigindo a observancia das suas obrigações.
A Monarchia tem o direito e o dever de defender-se, porque é a legalidade existente. Defenda-se, porem, principalmente d'aquelle modo. Os cirios espectaculosos e os comicios sertanejos, as genuflexões servis dos que a adulam e as astucias interesseiras dos que a exploram, as ameaças e perseguições, as sabradas da policia e as descargas da municipal, não lhe servirão de baluarte.
Pela violencia e pelo terror não se defenda! Mal está para aquelles que só pela violencia e pelo terror se podem sustentar: disse-o com justeza quem terrivelmente o experimentou! Sempre, sempre, sempre dentro da Constituição, que é a sua fortaleza, defenda-se a Monarchia com a lei, não resistindo todavia a nenhuma reforma prudente e justa. E só d'este modo será util a si e ao Pais, que bem merece ser propiciado por melhor fortuna.
Bem o merece com effeito... E a proposito termino, dizendo com um grande historiador: — «Deus, que deixa cair sobre as nações o peso das suas culpas, não consentirá que a vida inteira d'ellas se componha de mentira