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1056 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 104

a lei com severidade porventura excessiva e não com aquela objectividade extrema e aquela impassibilidade que são o timbre da sã administração da justiça. No fundo, o artigo 117.º contém, pois, uma verdadeira garantia individual, incluída entre as admitidas no § 1.º do artigo 20.º, e que bem poderia alinhar ao lado das enumeradas no artigo 8.º
E à luz destes princípios constitucionais que o Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios deve ser considerado.
Segundo o seu actual estatuto, o Decreto-Lei n.º 27485, de 15 de Janeiro de 1937, o Tribunal é constituído por três membros: um presidente, juiz de direito, e dois assessores, sendo um o comandante-geral da Polícia de Segurança Pública e o outro um oficial superior do Exército ou da Armada, e um promotor de justiça (artigo 4.º). E das suas decisões só há recurso, restrito à matéria de direito, directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, quando a multa aplicada for superior a 6.OOO$ (artigo 3.º).
Por força do artigo 2.º deste diploma, o preceito fundamental regulador da competência do Tribunal continua sendo o artigo 157.º do Decreto-Lei n.º 27 207, de 16 de Novembro de 1936, que dispõe:

Os delitos e transgressões sobre géneros alimentícios, e designadamente os previstos no Decreto n.º 20 282, de 31 de Agosto de 1931, são julgados pelo tribunal especial a que se refere o mesmo decreto e pela forma nele prevista.

A esta competência geral, fixada em fórmula excessivamente vaga para tão delicada matéria, acresce a atribuída por alguns diplomas especiais, tal como o Decreto-Lei n.º 25 732, de 12 de Agosto de 1935, que, mandando julgar as transgressões dos seus preceitos nos termos do Decreto n.º 20 282, implicitamente as incluiu na esfera de competência do Tribunal.
Por falta de referência a qualquer delimitação territorial, o Tribunal estende a sua jurisdição a todo o País, e disso resulta que a instrução de grande parte dos processos tem de ser feita mediante cartas precatórias, o que demora o andamento dos autos e priva o Tribunal do contacto directo com importantes fontes de conhecimento para a formação da sua convicção; assim, a justiça é frequentemente administrada em forma puramente burocrática e este inconveniente do sistema arrasta outro consigo, o de obrigar os arguidos a defenderem-se longe dos seus domicílios, que podem estar situados nos extremos do País, e isto acarreta despesas e dificuldades de toda a ordem, necessariamente traduzidas em grave diminuição prática das condições de defesa.
Vistas em conjunto estas características, o Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios aparece como órgão judiciário absolutamente anómalo. A sua constituição, segundo a qual só o juiz presidente é magistrado togado, permite, pelo mecanismo do vencimento, que se tomem decisões contra o voto do único jurisperito; a admissão do recurso directamente para o Supremo Tribunal de Justiça só em matéria de direito e em casos de condenação em multa superior a certo mínimo coloca-o fora da hierarquia judiciária normal e traz consigo a total privação ou a importante afectação do direito ao recurso; finalmente, a extensão da sua competência a todo o território nacional, dificultando e onerando pesadamente a defesa dos arguidos, contraria o princípio tocante à boa organização do Estado, segundo o qual a justiça deve ser administrada em condições de idêntico gravame para todo o País.
Sendo, como é, anterior à promulgação da Constituição Política de 1933, pode, com esse fundamento, sustentar-se a constitucionalidade do Tribunal. Mas, em face das suas já analisadas características, não há dúvida de que contraria o espírito do artigo 117.º da nossa lei fundamental. Nestas condições, entende a Câmara que não deve subsistir.
Pode pôr-se, porém, o problema de saber se para a boa administração da justiça é ou não conveniente que exista um órgão jurisdicional particularmente adequado à repressão dos crimes contra a saúde pública. Em caso afirmativo, esse órgão poderia ser um tribunal constituído conforme as regras normais da organização judiciária portuguesa e integrado nela, um tribunal que não seria especial, mas sòmente especializado, tal como os tribunais de menores e os da execução das penas.
Esta é a solução de que se aproxima o projecto em discussão ao dispor que o Tribunal dos Géneros Alimentícios passará a depender do Ministério da Justiça e será constituído por dois magistrados togados e por um oficial superior do Exército (artigo 62.º), cabendo recurso das suas decisões nos termos gerais (artigo 53.º, n.º 3.º).
Posto em paralelo com os tribunais criminais ordinários, haveria uma diferença essencial a distingui-lo destes: a de nele ficar dotado de poderes jurisdicionais um magistrado não togado. Ora esta particularidade ainda lhe faria manter a natureza de tribunal especial. É certo que esse defeito poderia eliminar-se, dando ao Tribunal a constituição homogénea dos tribunais comuns e sem prejuízo de ele ter como assessores os técnicos que se julgasse necessário agregar-lhe, mas dotados apenas de voto consultivo.
Mas esta criação de um tribunal especializado para se ocupar das infracções contra a saúde pública não parece justificar-se. A especialização de funções em tribunais pode ser muito útil para a boa e eficaz administração da justiça quando os ramos do direito que lhes compete aplicar assumem feição peculiar pela sua técnica própria, como o administrativo, por exemplo.
Não é esse, todavia, o caso do capítulo do direito penal em causa na discussão. Neste, os problemas a ventilar não têm notáveis particularidades jurídicas a considerar e a essência deles reside nas questões de facto, para as quais a prova tem de ser predominantemente pericial. Ora a verdade é que, organizada a instrução dos processos com bases desta índole, qualquer tribunal judicial normalmente organizado estará apto a aplicar a lei para decidir os feitos.
Em defesa da manutenção de um tribunal especializado no julgamento das infracções contra a saúde Pública tem-se invocado principalmente a necessidade e rapidez na aplicação da justiça neste sector, a maior severidade nas condenações quando, feitas por um tribunal cuja função é exclusivamente a de defender a saúde pública e, enfim, o forte efeito intimidativo que resulta da própria existência do tribunal.
Deve notar-se que a melhor justiça não é a que, pela severidade excessiva, se pode transformar em vindicta pública, mas a que mais ponderadamente aplica a lei. E, ressalvado este princípio, é fácil admitir que se, em boa política legislativa, isso for julgado necessário, aqueles objectivos podem alcançar-se igualmente através dos tribunais comuns, pelo emprego do processo sumário no julgamento de todas ou de parte das infracções e pelo aumento de severidade nas penas. Do resultado conjugado destes elementos resultaria necessàriamente um efeito intimidativo tão intenso como o que o Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios actualmente provoca.
Cumpre notar também que se o sistema proposto no artigo 39.º do projecto vier a concretizar-se, quer quanto à competência, quer quanto ao processo, os