1 DE FEVEREIRO DE 1957 1057
encargos de defesa dos arguidos tornar-se-ão muito mais pesados do que actualmente são. Na verdade, ordenando que o processo passe a regular-se pelo Código de Processo Penal e legislação complementar, a simplicidade dos trâmites empregados naquele Tribunal cederá ao tecido de formalidades próprias da lei geral. Será impossível, por exemplo, mesmo aos arguidos caucionados, eximirem-se a comparecer pessoalmente no julgamento. Essa formalidade tomar-se-á indispensável (Código de Processo Penal, artigo 418.º) e salta aos olhos quão oneroso será para eles que podem ser de Melgaço ou da ilha da Madeira, da ilha das Flores ou de Vila Real de Santo António, esse gravame a mais daqueles a que, em muitos casos, já os obriga a distância.
Se for assente o princípio da transformação do actual Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios, o modo de ela se realizar suscita ainda um importante problema de direito constitucional.
Com efeito, constitui matéria da exclusiva competência da Assembleia Nacional a organização dos tribunais [Constituição, artigo 93.º, alínea e)]. Não faz este preceito distinção alguma quanto & natureza dos tribunais a que se refere, e, sendo assim, impõe-se concluir que ele abrange tanto os tribunais ordinários como os especiais. E, por este modo, não pode o Governo dar ao Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios organização diversa da vigente sem infringir a lei fundamental.
É certo que, se o fizer, praticará uma inconstitucionalidade meramente orgânica, que só a Assembleia Nacional poderá apreciar (artigo 123.º, § único). Mas nem por isso esta Câmara se sente desobrigada de chamar a atenção para tal ponto.
Por todos os expostos motivos, é opinião da Câmara que o Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios deve ser extinto, ficando competentes para julgar as infracções que actualmente lhe cabe decidir somente os tribunais comuns.
Para o caso de se manter o intuito de reorganizar o mesmo Tribunal, a Câmara entende que o Governo deve propor essa alteração em proposta de lei a apresentar à Nacional.
10. No capítulo II contêm-se também as especialidades de processo em relação à lei geral que, apesar da regra de uniformização prescrita no artigo 39.º, foi considerado necessário ressalvar.
Logo no artigo 40.º enumeram-se as entidades a quem compete impedir a prática ou promover a repressão das infracções e bem assim o exercício da acção penal pelas contravenções previstas no decreto, mas declara-se que os poderes assim conferidos não prejudicam o disposto no Decreto-Lei n.º 37 007, de 15 de Outubro de 1945. Como o preceito basilar deste diploma é o de que a acção penal compete fundamentalmente ao Ministério Público (artigo 1.º), isto significa a plena entrada da matéria em causa no campo de acção desta entidade. O princípio assim expresso é vincado logo no artigo seguinte, ao dispor-se que a delegação da competência nele prevista para proceder à instrução preparatória dos processos não prejudica a direcção desta por parte do Ministério Público (artigo 41.º, n.º 1). E em seguida se determinam as normas positivas que a este permitirão manter a efectiva direcção da acção penal nos processos (artigos 42.º e 43.º).
A introdução deste princípio terá o maior alcance. Através das suas aplicações concretas se assegura um eficaz sistema de repressão das infracções previstas no diploma e se poderá evitar igualmente que se instaure acção penal contra quem não deva ser perseguido, nela. Na verdade, é facto notório que se levantam muitos autos sem razão bastante para procedimento penal; mas as autoridades fiscalizadoras, temerosas de que se lhes atribua qualquer parcela de favoritismo, a todos mandam seguir seus trâmites, e disto resulta a instauração de muitos processos sem fundamento legal.
Dir-se-á que nestes casos a absolvição futura consagrará a inocência dos arguidos, mas esta consolação é bem pequena. São sempre grandes os ónus da defesa, e o dano moral causado pelo conhecimento público da acusação é quase sempre irreparável. Por isso há quem prefira submeter-se a exigências descabidas da fiscalização, feitas no intuito de obrigar a remediar hipotéticos prejuízos, a deixar seguir os processos para juízo, embora com a certeza antecipada de uma absolvição. Situações destas produzem mal-estar público, criando o sentimento de que a justiça é inacessível. Ora o princípio da direcção da acção penal pelo Ministério Público permitirá evitá-las, se for vazado em regras processuais adequadas.
11. Nos termos expostos, a Câmara Corporativa, recordando o seu voto de que o Governo decreta a regulamentação do comércio de géneros alimentícios, dá a sua aprovação na generalidade ao projecto de decreto-lei n.º 518, com as restrições já fundamentadas:
1.º De que dele se deve destacar para diploma independente a matéria do capítulo III, «Das infracções contra a economia nacional»;
2.º De que ele se não deve ocupar de reorganizar o Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios, por ser organicamente inconstitucional esse objecto.
II
Exame na especialidade
A) Das Infracções em especial
12. Os primeiros quatro artigos da secção I, «Das infracções em especial», do capítulo I do projecto tratam do crime de falsificação de géneros alimentícios.
As fontes destes preceitos foram os artigos 53.º a 60.º do Decreto n.º 20 282, de 31 de Agosto de 1931, e tal matéria aparece agora melhor ordenada e muito clarificada.
Nas três alíneas do n.º 1 do artigo 1.º prevêem-se três modalidades de falsificação: a dos géneros que, depois de falsificados, sejam, por sua natureza, susceptíveis de prejudicar a saúde do consumidor (a); a dos géneros cuja falsificação não possa ter aquela consequência, mas possa causar prejuízo a terceiro ou ao Estado (b); e, finalmente, a falsificação que, sendo nociva à saúde, for devida a simples negligência (c).
Destas três incriminações a última suscita reparos. De facto, e segundo os termos do n.º 3, a falsificação ou se produz por substituição, de modo a obter-se uma imitação fraudulenta, ou se efectua através de modificação das qualidades do produto. No primeiro coso apenas pode dar-se mediante uma acção que só pode ser dolosa, o que, por definição, exclui a negligência; mas no segundo pode admitir-se que a falsificação resulte de modificações na composição dos produtos causadas por fabrico descuidado, contudo não intencionalmente defeituoso. Em atenção a estes elementos, que postulam o desrespeito das condições de preparação dos alimentos, parece mais adequado considerar o facto como contravenção em preceito à parte, punindo-o embora com a multa que o projecto prevê para a infracção culposa.
No n.º 2 do artigo dá-se a definição de «género alimentício». Salvo pequenas diferenças de redacção, é a do artigo 1.º do Regulamento sobre Géneros Alimen-