424 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 61
gicas, e de cujos artigos 2.º e 3.º se infere que a família não pode opor-se a autópsia de estudo.
Assim, no artigo 2.º mostra-se expressamente que a autópsia pode ser efectuada mesmo quando o cadáver é reclamado pela família, visto aí se fixar a seguinte doutrina.
Quando tenha havido reclamação para enterro, tanto na autópsia como no arranjo exterior do cadáver, se guardarão escrupulosamente os preceitos e os cuidados exigidos pela comparência do corpo em cerimónias fúnebres, sem ofensa da piedade afectuosa das famílias.
E, por seu lado, o artigo 3.º preceitua
A família, como tal reconhecida, quando pretenda que a autópsia ao cadáver se abrevie, ou mesmo se não pratique, fará a sua solicitação directa ao respectivo professor, ou quem as suas vezes fizer, que a atenderá, conciliando-a até onde for possível, com as imposições da investigação científica e do aprendizado médico.
Não parece legítimo, pois, duvidai-se de que, nos termos deste Decreto de 18 de Agosto de 1910, as autópsias de estudo promovidas pelas antigas Escolas Médico-Cirúrgicas (hoje Faculdades de Medicina de Lisboa e do Porto) podem ser executadas independentemente de oposição por parte das famílias ou de reclamação dos cadáveres para enterramento particular.
Em relação a Faculdade de Medicina de Coimbra, não conhecemos outra legislação que não sejam as citadas disposições dos velhos estatutos pombalinos, que supomos não terem sido derrogadas por qualquer disposição posterior Aliás, elas encontram-se confirmadas por um regulamento interno - o Regulamento da Casa Mortuária do Hospital da Universidade -, que, embora sem aprovação do Governo, parece ainda hoje vigorar como ordem interna de serviço (4).
O Regulamento da Casa Mortuária, redigido em estuo narrativo e não preceptivo, começa por no artigo 1.º dizer que ca casa mortuária compreende uma repartição destinada a prevenir os enterros prematuros, ou casa mortuária propriamente dita, onde se conservam os cadáveres por vinte e quatro horas, em camas apropriadas e com os aparelhos indicadores de pequenos indícios de vida, outra repartição destinada ao serviço de autópsias, observações microscópicas e análises químicas, e uma terceira repartição paia depósito de cada veies, onde se demoram ata que são levados para o cemitério ou para o teatro anatómico da Universidade».
E no artigo 14.º estatui esse regulamento
Os professores da Faculdade de Medicina requisitam por escrito, do administrador, os cadáveres de que precisam para o teatro anatómico, e os clínicos do hospital, que tiverem de proceder a autópsias desligadas do ensino da Faculdade, também fazem requisições semelhantes Todas estas requisições chegam ao administrador por intermédio do facultativo interno, a quem compete a regularização de todo aquele serviço.
Para regularização destes sei viços os artigos 5.º e 6.º fixam as condições e as horas a que o padre capelão há-de fazer a encomendação dos cadáveres - o que deverá estar terminado às 9 horas da manhã - e o artigo 7.º estabelece que «das nove horas em diante ficam as repartições da casa mortuária à disposição dos clínicos do hospital para o exame e averiguações, que desejem fazer em todos os cadáveres, que não tenham sido reclamados para o teatro anatómico da Universidade».
Por seu lado, o artigo 11.º regula a remoção dos cadáveres da casa do depósito para o cemitério ou paia o teatro anatómico da Universidade e, depois de prevenir em especial os «casos de enterro com funeral previamente autorizado pelo administrado», preceitua no § 1.º
A concessão para enterro com funeral é pedida em requerimento ao administrador pela família do defunto ou por quem a represente, e o despacho para a concessão deve sempre ressalvar as reclamações para autópsias, em proveito da ciência médica ou de averiguações judiciais Não havendo quem requeira o enterramento por aquela forma, o cadáver é entregue ao carro municipal encarregado destas conduções para o cemitério, ainda que pertença a doente que tenha entrado para qualquer das três classes dos que pagam o seu tratamento.
Pelas disposições citadas se vê claramente que, no sistema deste regulamento, se mantém o princípio de os cadáveres dos doentes falecidos no hospital da Universidade se encontrarem obrigatoriamente sujeitos ao aproveitamento para os estudos da Faculdade, tal como acontecia nos velhos estatutos pombalinos. E, seja por ainda estarem em vigor estes preceitos, seja por eles haverem sido incorporados em normas consuetudinárias, o certo é que, ao que parece, são eles que ainda hoje regem esta matei ia na prática da Faculdade de Medicina de Coimbra, segundo informações particulares que gentilmente nos foram prestadas.
Considerando-se, em conjunto, tudo quanto deixamos exposto, deve concluir-se que as Faculdades de Medicina têm o poder de dispor, para os seus estudos de anatomia e para outros fins de investigação e de ensino, dos cadáveres das pessoas falecidas nos seus hospitais, sem que as respectivas famílias a isso se possam opor.
Conhecem-se, todavia, outras disposições legais a que já se tem atribuído o alcance de esclarecei ou revogar os preceitos anteriormente citados, em termos de as autópsias clínicas só serem admissíveis quando a família do falecido a tal não se opuser e os cadáveres não forem reclamados para inteiramente particular.
Nesse sentido se podem invocar, antes de mais, os regulamentos do Hospital de S José e anexos, datados de 1901.
(4) O Decreto de 22 de Junho de 1870, que continha o Regulamento dos Hospitais da Universidade, dava competência ao administrador respectivo para propor ao Governo os regulamentos e reformas necessários para a administração económica e serviço técnico dos hospitais e estabelecimentos anexos (artigo 4.º, n.º 4.º), e estabelecia no artigo 21.º que os regulamentos internos estatuíam sobre todo o serviço técnico, e os encargos e obrigações de todos os empregados dos hospitais e estabelecimentos da sua dependência, com aprovação do Governo.
Ao abrigo destas disposições foram elaborados quatro regulamentos, entre os quais o Regulamento da Casa Mortuária citado no texto, e que se encontram publicados em folheto da autoria de A A da Costa Simões, com o título de Regulamentos Internos dos Hospitais da Universidade de Coimbra e Anotações Respectivas.
Do prefácio da 3.ª edição deste folheto, datada de 1882, deduz-se que só um desses regulamentos - o dos quartos particulares - teve aprovação régia por Decreto de 7 de Janeiro de 1878, mas que os restantes permaneceram em vigor ao abrigo do n.º 10.º do artigo 4.º do citado Decreto de 22 de Junho de 1870, no qual só comete ao administrador o «prover a todos os mais actos de administração interna e externa que legalmente se derivem do seu cargo».