428 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
Todos estes diplomas prevêem a colheita no caso de o falecido nela ter consentido e, no caso de faltar esse consentimento, permitem-na nos estabelecimentos oficialmente autorizados, se não houver oposição-da família. Mas o decreto francês de 26 de Setembro de 1947 admite essa colheita mesmo no caso de a família se opor, quando efectuada em estabelecimentos hospitalares designados pelo Ministro da Saúde e da População, e quando o médico-chefe a ordenar por necessidade de ordem científica ou terapêutica, fora desses estabelecimentos, as colheitas devem efectuar-se nos termos do decreto de 17 de Abril de 1943, o qual só as permite com o consentimento da família, ou se esta não se manifestar ou o defunto não tiver família (10).
Finalmente, todos estes diplomas sujeitam as colheitas, em geral, à autorização dos chefes de serviço ou dos estabelecimentos hospitalares, além de outras formalidades que, para esta introdução, não têm interesse especial.
5. ELABORAÇÃO E CONTEÚDO DO PROJECTO - A iniciativa da elaboração do projecto de um diploma sobre a utilização de tecidos e órgãos de cadáveres para fins terapêuticos partiu, segundo consta, de uma representação feita, há cerca de treze anos, pela Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa à Subsecretaria de Estado da Assistência.
Este departamento governamental mandou então ouvir as Faculdades de Medicina e os Conselhos Médico-Legais, e consultou também a Procuradoria-Geral da República, que, sobre o assunto, proferiu o douto parecer n.º 35/52, de 27 de Novembro de 1952.
A questão não teve porém seguimento até à criação do Ministério da Saúde e Assistência, em 1958, o qual consultou de novo a Procuradoria-Geral da República, que veio a dar novo parecer, com o n.º 60/59, de 14 de Janeiro de 1960 (11), e ouviu diversas outras entidades Essas diligências constituem os precedentes imediatos da proposta em exame, a qual, elaborada pelo então Ministro da Saúde e Assistência, Dr. Henrique Martins de Carvalho, foi enviada à Câmara Corporativa conjuntamente com uma colecção dos pareceres das entidades ouvidas, tais como as Faculdades de Medicina, os Conselhos Médico-Legais, os Hospitais Civis de Lisboa, o Instituto Maternal, o Instituto Nacional do Sangue e o representante do Patriarcado de Lisboa no Conselho Coordenador daquele Ministério.
O bem elaborado relatório do projecto, em alguns aspectos apoiado em números concretos, põe em evidência a extrema importância das normas que se pretende promulgar, e acentua que se procurou observar na elaboração do novo diploma cuidadosa prudência, a fim de se encontrar «aquele justo mas difícil equilíbrio entre o respeito ancestral que ao homem merece o cadáver de outro homem e as imposições científicas que, sem menosprezo por aquele respeito, obrigam a utilizar os cadáveres humanos para benefício dos diminuídos, dos feridos e dos doentes».
As disposições do projecto revelam, efectivamente, estas preocupações de equilíbrio e de prudência Nelas se regulam todos aqueles pontos que, em geral, vimos.
estarem contemplados na legislação estrangeira acima citada, mas em muitos pormenores o projecto é mais minucioso e cuidadoso do que ela, e, mais do que isso, afasta-se das soluções mais radicais, procurando satisfazer quanto possível ao respeito devido para com o morto e para com os direitos individuais e familiares
Por isso mesmo o projecto fica, até, em alguns aspectos, aquém da legislação portuguesa relativa a outros aproveitamentos do cadáver, cuja orientação expusemos acima, e esse facto, ao mesmo tempo que revela o escrúpulo que foi elaborado, torna-o, em muitos pontos, mais ajustado aos princípios morais e jurídicos que devem dominar a matéria, pelo menos enquanto necessidades graves de ordem pública não tornem legítimo, perante os mesmos princípios, o recurso a soluções mais prontas e eficientes.
I
Apreciação na generalidade
§ 1.º Problemas suscitados pela matéria do projecto
6. ATITUDES E PRÁTICAS CORRENTES ACERCA DO CADÁVER - Não nos vamos referir aqui, em pormenor, às atitudes dos povos primitivos, nem aos numerosos mitos, antigos ou ainda subsistentes em povos atrasados, relacionados com a morte e com o cadáver.
Não seria este o lugar próprio para o fazer, mas não será despiciendo recordar-se que, desde os tempos mais remotos, os homens se preocuparam com a sorte das pessoas falecidas e manifestaram a crença de que a morte não põe termo a toda a existência humana, e que alguma coisa há, para além dela, na qual os homens se sentem fortemente interessados.
À parte certas práticas menos vulgares, como a de cremar os cadáveres ou a de os expor a acção destruidora da chuva e das aves de rapina, em quase todos os povos tem vigorado o costume de inumar os cadáveres, e os túmulos constituem, em muitos casos, as relíquias mais eloquentes e ricas das civilizações ]á desaparecidas Esses túmulos revelam frequentemente o respeito e a veneração prestados aos mortos, quando não o temor destes, e apresentam claros vestígios de verdadeiro culto rendido à memória das pessoas falecidas
Os mortos eram, entre os povos primitivos, ao mesmo tempo respeitados e temidos, e os vivos prestavam-lhes culto, mas muitas vezes também exerciam sobre eles actos de violência, quer com o fim de evitar que os mortos voltassem para perseguir os vivos ou vingar a própria morte, quer para se aproveitar em das virtudes e da protecção dos falecidos, como se diz acontecer ainda hoje com certos canibais.
O que nos interessa é registar os sentimentos que, através dos séculos, se têm dedicado aos mortos e progressivamente se têm aperfeiçoado, sentimentos esses dos quais aquelas práticas e crenças primitivas certamente são, afinal, interpretações intuitivas e grosseiras.
E, deste ponto de vista, pode afirmar-se que o cadáver tem sido sempre objecto de veneração e de respeito, sentimentos que são extensivos à sepultura, e que a morte e a inumação constituíram sempre acontecimentos que os homens rodeiam de actos de culto religioso.
É bem significativo o facto de uma das mais antigas e belas animações que se conhecem do direito natural ter sido pronunciada em defesa do dever de sepultar os mortos como acto de veneração e de culto relacionado com eles.
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(10) André Decocq, ob cit , pp 207 e 208
(11) Este parecer, homologado cor despacho do Ministro da Saúde e Assistência, acha-se publicado, conjuntamente com o anterior, de 1952, acima citado, no Boletim do Ministério da Justiça n.º 94, de Março de 1960, este a pp. 49 e seguintes e aquele à pp 62 e seguintes, e encontra-se editado em separata do mesmo Boletim com o título de Condição Jurídica do Cadáver - Aspectos Jurídicos da Utilização de Material Cadavérico em Cirurgia, Lisboa, 1960