432 ACTAS DA CAMARÁ CORPORATIVA N.º 51
E quando não querem sancionar essa tendência, pelo menos nas modalidades mais extremistas, os legisladores são tomados de preocupações de que os antigos foram isentos e vêem-se obrigados a fixai limites à livre disposição das pessoas, com isto mesmo, porém, denunciam o desagravamento dos factos (26).
Também neste ponto se pode dizer, à semelhança do que Savigny afirmava acerca das leis romanas sobre a família (30), que as legislações, isoladas dos costumes, podem dar uma ideia muito impei feita da realidade social - muitas vezes a ausência de certas garantias legais significa a harmonia e correcção dos costumes, tal como, em muitos casos, o reconhecimento delas, em vez de representar a conquista de uma segui anca até aí inexistente, é antes imposta pela necessidade de reagir contra costumes ou tendências contrários e reprováveis.
A obra de Decocq, Essar d'une théorte genérale des droits sur la personne, reflecte claramente o espírito de que é animada a evolução legislativa e jurisprudencial dos tempos modernos, no tocante ao problema que nos ocupa. Dominado pela concepção voluntarista e empirista do direito, tão característica de importantes sectores da doutrina francesa, não só procura ai rolar e descrever toda a espécie de direitos sobre pessoa alheia, consagrados pelas leis e pela prática dos tribunais, mas fala também e constantemente na «sacialidade» da pessoa, a qual diz fundada num «sentimento irracional», na sacralidade do cadáver, nos «tabus» e na «aura mágica» da pessoa, no «dogma da intangibilidade» do corpo humano, e chega a afirmar que, paia numerosos autores, a impossibilidade de terceiros adquirem direitos sobre o corpo de pessoas alheias sem o consentimento delas constitui um «dogma aceite em virtude de uma fé reflectida, ou considerado como uma verdade revelada», e, não sem aprazimento, legista as manifestações da «dessacralização» das pessoas e do cadáver, e do recuo do dogma da intangibilidade e da tendência para a dessacralização da pessoa (31).
Não se diga, pois, que estes problemas têm interesse meramente teórico, nem se pretenda, sequer, que eles sejam estranhos às questões versadas no presente parecer e relativas ao cadáver.
Todos os aspectos em que se desdobra o tema dos direitos relacionados com a personalidade são solidários entre si, e as hesitações e incertezas da doutrina, aliadas aos progressivos abusos da prática, mostram que teria a maior importância definem-se com rigor os fundamentos racionais dos atributos e prerrogativas que hão-de defender o homem não só do seu semelhante e da sociedade, mas até dos desvios próprios. E importa reconhecer-se que todos as limitações inconsideradas dessa defesa, toda a brecha aberta nesse reduto sem as devidas precauções, têm sempre grande probabilidade de contribuir para desorientar as ideias e para enfraquecer as garantias da personalidade
Nestas preocupações deve ter lugar de relevo a sorte do cadáver humano. Além dos nexos directos, existentes entre as questões a ele respeitantes e os problemas relativos a personalidade, é de grande importância o reflexo que as concepções correntes e as opiniões científicas, acerca do corpo de pessoas falecidas, podem exercer sobre a resolução da problemática geral da personalidade. O respeito e veneração pelo cadáver é, já o dissemos, velho como o mundo, e, se bem se pensai, ver-se-á que ele tem constituído eficacíssima garantia para a personalidade destituído de vida, incapaz de se defender e abandonado, portanto, à piedade e a honra dos vivos, o cadáver tem sido um dos mais fortes diques opostos à torrente dos desarmamentos e do materialismo, desprezem-se os despojos do homem, tomem-se eles como coisas, transformem-se em meros objectos, e em breve se começará a perguntar se há diferença entre eles e o velho moribundo, o imbecil, o delinquente perigoso ou o simples doente que já em si traga o germe da morte.
Entre todos os sectores deste tema há relações profundas e, por assim dizer, intrínsecas, que hão-de estar presentes a quem pretenda ter a visão integral e rigorosa de todos os aspectos em que ele se desdobra. Mas há mais, ainda há entre eles relações extrínsecas, criadas por simples contiguidade ou analogia, que tornam agudos, para o conjunto da questão, os próprios problemas particulares de cada um desses aspectos.
Por tal razão, poderia afigurar-se indispensável, para o nosso objectivo, examinar-se o complexo desses problemas em toda a sua extensão e profundidade Não pensamos, todavia, que seja conveniente ou, ainda menos, necessário alargar, por essa forma, o âmbito do nosso estudo.
Na verdade, a própria complexidade desses problemas não nos permite levar a cabo essa importante tarefa Para o fazermos, seria necessário traçar-se o quadro das concepções fundamentais acerca dos direitos que, numa fórmula propositadamente vaga, temos chamado direitos relacionados com a personalidade, e dar conta das principais dúvidas que eles têm suscitado.
Enveredar por esse caminho sua, porém, transcender por completo o nosso tema e - o que seria pior - permitir que ele se dissolvesse numa exposição forçosamente extensa, deixando de constituir o objecto principal das nossas indagações, e não e deslocado observar-se até, a este respeito, que um dos males de que tem padecido a teoria jurídica do cadáver consiste, exactamente, em ela ser desenvolvida, em geral, como acessório de outras construções de maior relevo As considerações acima feitas põem em evidência a necessidade de nunca se esquecer que essa teoria se encontra em íntima relação com a da personalidade, mas não devem sei motivo para desviarmos a atenção daquilo que é, na realidade, o objecto directo do estudo que nos cumpre fazer.
Por outro lado, para se evitarem as dificuldades com que se tem debatido a doutrina dos chamados direitos de per-
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O artigo 5.º do Código Civil italiano estabelece, nesta ordem de ideias. «Os actos de disposição do próprio corpo silo proibidos quando causem limitação permanente da integridade física ou quando sejam por outra forma contrários a lei, à ordem pública ou aos bons costumes».
O anteprojecto do novo Código Civil Francês (Avant-projet de Code Civil presente par la Comission de Reforme du Code Civil, I parte, Librairie du Recueil Sirey, Paris), por seu lado, consagra no artigo 151.º a proibição dos netos de disposição de todo ou de parte do próprio corpo, quando impliquem ofensa gravo o definitiva à integridade do corpo humano, salvo quando justificada pela arte médica.
Mais recentemente, o Ministério da Justiça português publicou o projecto do livro i do futuro Código Civil (Código Civil, livro I, parte geral, 1.ª revisão ministerial, Lisboa, 1981), onde se contém a seguinte disposição, inspirada em preocupações análogas às das citadas anteriormente.
Art 59.º (Limitação voluntária dos direitos de personalidade) - 1 Toda a limitação voluntária imposta ao exercício dos direitos da personalidade é nula, quando contrária aos princípios da ordem pública.
2 Se não for nula, a limitação voluntária ó sempre revogável, ainda que com obrigação de ressarcir os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte.
(36) Traité de Droit Romain, trad do alemão, I, Firmin Didot Frères, Paris, 1840, p 344.
(37) Ob cit, passim, mormente os n.ºs 15, 20, 26, 27, 46, 52, 54 e 282, texto e epígrafes que os antecedem ou constam do índice