430 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
Assim, logo o destino geral do cadáver, a consumpção por meio de enterramento ou, anòmalamente, por cremação, levanta problemas de regime que põem em jogo direitos directa ou indirectamente ligados à personalidade.
Em todo esse regime se manifesta, com especial interesse para o nosso estudo, a vontade do próprio falecido ou das pessoas de sua família.
Relativamente aos funerais e enteiramento o Código Civil manda expressamente observar as disposições do falecido, no artigo 1899, n.º 1, e o Código do Registo Civil de 1932 estabelecia no artigo 327.º que as solenidades dos funerais se regulariam pela vontade do falecido ou, na falta de declaração dele, pela vontade de sua família. E, note-se, paia esta segunda hipótese não se manda observar a vontade dos herdeiros (como seria de espetar se o cadáver constituísse uma coisa que testasse do falecido), mas sim das pessoas de família, e, como se tem entendido, o direito dos familiares, baseado nas relações pessoais deles com o morto, não só é independente da qualidade de herdeiro, mas dele sei reconhecido por ordem determinada pelo grau de intimidade dessas relações, outrém diversa da que a lei fixa para a sucessão legitima, ou seja, deve atribuir-se em primeiro lugar ao cônjuge, depois aos filhos, etc
O Código do Registo Civil de 1958 não contém qualquer disposição análoga i, do citado artigo 827.º do código anterior, mas, do regime fixado paia a cremação, deduz-se que o pensamento do código se ajusta aos princípios que acabámos de enunciar.
Como se sabe a Igreja Católica proíbe, em regia, a cremação dos cadáveres (Codex Júris Canonici, cânon 1203, §§ 1.º e 2.º), não porque em si mesma ela seja responsável, mas por, com frequência, ser defendida com um sentido essencialmente anti-religioso, e por isso submete os infractores a penas canónicas. Já esta circunstância constitui exemplo de um problema de regime jurídico que transcende por completo a simples regulamentação das coisas o regime não é determinado directamente em função do que representa o cadáver em si mesmo ou aquela for rua de o consumo, mas fim em atenção a relações de ordem ideológica que se pretende estabelecer entre a clemação e outras realidades que lhe são totalmente estranhas. Como quer que seja, a lei civil admite ou tolera a cremação, mas exige, para ela se efectuar, além de outras condições, a determinação expressa do falecido feita por escrito [Código do Registo Civil, artigo 244.º, alínea a) do n.º 2], também aqui é decisiva, como se vê, a vontade do falecido. Nesta matéria, todavia, a lei confere relevância especial à vontade dos familiares, por quanto não se contenta com a declaração do falecido exige que a incineração seja requerida pelo cônjuge sobrevivo, ou, não existindo este, pela maioria dos descendentes de maioridade do falecido ou, na falta de todos, pelo parente mais próximo (código citado, artigo 244.º, n.º 1).
Não é despiciendo mencionar-se o facto de a lei requerer, para a clemação, a apresentação de atestado médico comprovativo de que a morte resultou de causa natural, confirmado pela autoridade sanitária competente, à qual incumbe informar sobre a inexistência, no caso concreto, de qualquer inconveniente na incineração [código citado, artigo 244.º, alínea b) do n.º 2], e ainda dizer-se que, em caso de morte violenta, a incineração só poderá ser autorizada depois de realizada a autópsia e com o parecer favorável do agente do Ministério Público (ibid , artigo 244.º, n.º 3). Tudo são precauções legais que revelam que o regime jurídico do cadáver não é traçado a partir do que ele representa em si mesmo, mas de circunstâncias relativas à pessoa a quem pertencia e a respectiva morte
Todo o regime jurídico do cadáver nos encaminha paia esta última conclusão, mas é de especial interesse ponderar-se o papel atribuído pela lei à vontade do falecido e dos familiares.
Quanto ao funeral e enterramento, já se disse que é decisiva a vontade do defunto. Ora é evidente que este facto coloca directamente um aspecto do regime do cadáver no círculo dos direitos que a própria pessoa tem sobre si mesma e sobre o seu corpo podei á classificar-se o cadáver de coisa e sustentar-se até sei ele coisa no comércio, por sei susceptível de constitui! objecto de direitos, mas a verdade é que o direito de dispor do cadáver paia efeitos de funeral e enterramento pertence ao próprio falecido e por conseguinte, enquanto este é vivo e o seu corpo se acha fundido na sua pessoa.
Claro que se poderá dizer, para salvar os aspectos formais da dou ti ma jurídica, que o direito em questão respeita a uma coisa futura. É obvio, contudo, que este modo de ver não corresponde ao conteúdo ideológico e sentimental do regime em causa, por isso que, indiscutivelmente, ele é moldado pela ideia de disposição do corpo próprio, como tal o que está em causa não é uma coisa, e ainda menos uma coisa futura, antes se tem em vista o destino que o corpo, em atenção ao que é em vida, deve ter depois da morte
Conjuntamente com a vontade do falecido, a lei considera ele vau te a das pessoas de sua família, seja subsidiariamente (caso da inumação), seja cumulativamente (caso da incineração) Nesta última hipótese, a lei constitui, em favor dos familiares, um direito que só surge depois da morte e, por isso, recai directamente sobre o cadáver, é manifesto, contudo, que esse direito assenta em fundamentos idênticos aos do direito concedido ao defunto em vida e que tem natureza análoga à dele, não se trata, por conseguinte, de um direito sobre uma coisa, como tal, senão de direito relativo ao corpo de uma pessoa, se bem que morta.
Por outro lado, é legítimo aproximar a disposição do cadáver da que as pessoas vivas podem fazer de partes do seu corpo, e não é difícil enunciai hipóteses em que progressivamente nos vamos afastando da ideia de coisa.
Assim, é lícito dispor-se de uma parte separada do corpo (cabelo, por exemplo), como é legítimo celebrar-se contrato acerca de partes que hão-de vir a ser separadas do corpo, ou ainda do próprio corpo na sua integridade (por exemplo o contrato que tenha por objecto a alteração do corpo, por meio de intervenção cirúrgica). Sem querer discuta o valor moral de todos estes casos, ou de todas as modalidades com que eles podem apresentar-se, bastamos por em evidência que as razões invocáveis para se defender a eficácia da vontade em tais hipóteses, ou para se lhe impor restrições, são afinal as mesmas que poderão aduzir-se a respeito da disposição do cadáver e das limitações impostas a vontade, relativamente ao destino deste.
E tudo quanto se tem dito é aproximável do regime estabelecido para os aproveitamentos do cadáver para fins científicos ou judiciários o que sempre pesa na lei é a consideração da pessoa, e não o cadáver olhado exclusivamente no seu estado presente.
Quer dizer contra a ideia tecnicista de que o cadáver é uma coisa ou, para se explicarem os direitos concedidos ao próprio homem sobre o seu corpo depois da noite, uma coisa futura verifica-se que todo o regime legal tem em vista aspectos em que o cadáver reflecte a pessoa a quem pertenceu em vida e as relações dela com outras pessoas, os factos da sua vida e as crenças ou princípios por que se orientava. De um ponto de vista substancial, longe do o cadáver nos aparecer como coisa, presente ou futura,