16 DE DEZEMBRO DE 1963 433
sonnlidade seria sempre necessário rever-se essa doutrina à luz de uma concepção substancial da personalidade Mas uma vez que assim se proceda e se lancem as traves mestras da ordem jurídica em harmonia com uma concepção personalista já se disporá das bases necessárias para se construir a doutrina jurídica do cadáver sem necessidade absoluta de se versarem todos os problemas relativos aos direitos de personalidade, com essa orientação se conseguirá, ainda, a vantagem de não diluir o objecto deste estudo numa matéria muito mais vasta, no conjunto da qual sem dúvida ele surgiria devidamente enquadrado, mas, afinal, ao mostraria também um tanto subalternizado.
Por todos estes motivos, em vez de tomarmos como fulcro das nossas pesquisas os direitos de personalidade, achamos preferível investigar directamente os fundamentos profundos da resolução dos problemas que especificam e visamos, e que residem nos aspectos gerais e extra jurídicos da personalidade humana, bem como nos corolários fundamentais que daí devem inferir-se acerca da estrutura básica da ordem jurídica Assentes esses fundamentos, enfrentaremos abertamente os problemas relativos ao cadáver, tomando, do conjunto das questões respeitantes aos direitos relacionados com a personalidade, apenas aquelas que mais estreitamente se prendem com essa matéria.
Em obediência a este programa, começaremos no texto subsequente por examinai as perspectivas fundamentais do homem e da sua morte a luz da doutrina cristã, à qual nos acolhemos pelos motivos adiante expostos, e tentaremos, em seguida, definir as linhas fundamentais de uma concepção personalista do direito ajustada a essas perspectivas Posto isso, procuraremos construir directamente a doutrina jurídica do cadáver tal como ela deve brotar daquela concepção personalista do direito.
§ 2.º Perspectivas fundamentais do homem e da sua morte perante a doutrina cristã
10. RAZÃO DE SER DESTE ESTUDO. - Abandonando pois o estudo ex professo da construção técnico-jurídica da personalidade e dos direitos com ela relacionados, e procurando colocar-nos apenas no plano das concepções fundamentais quo, aliás, sempre teriam de sor examinadas para proceder correctamente a essa construção, o primeiro problema que se propõe à nossa consideração é o de saber se o corpo do homem e o cadáver em especial têm carácter sagrado, como se lhes tem atribuído, ou se não se trata antes de simples «tabu» ou mera «aura mágica», como, segundo dissemos, já se tem pretendido.
Para se responder a esta pergunta e, no conjunto do tema, se saber distinguir o que é efectivamente fundamental do quo corresponde a simples desvio ideológico ou a verdadeira superstição, parece-nos indispensável tentarmos uma síntese dos ensinamentos da doutrina cristã a respeito do homem, da sua natureza, da sua morte e do sou fim último.
Ao cristianismo se deve, na verdade, o pleno reconhecimento do valor da personalidade humana, e esse não é, decerto, um dos menores benefícios que ele outorgou a humanidade, visto que, longe de se ter reduzido a simples teoria ou programa de reforma, logrou penetrar na propila vida e moldar aquele tipo especial de civilização, ao qual muitos chamam ocidental, mas que, por antonomásia, é também apelidada de civilização cristã.
Decerto poderiam existir outras formas de civilização inspiradas pelo cristianismo. Mas a verdade é quo, vista em si mesma, aquela pode reivindicar, com justiça, o nome na custa, porquanto assenta em estruturas - aliás de valor universal - que só o cristianismo pode erguer e sustentar, e, mesmo naqueles cambiantes particulares, resultantes do qualidades e tendências dos povos do Ocidente da Europa e dos seus seguidores, essa civilização é verdadeiramente filha do cristianismo, pois só no clima por ele criado aquelas tendências e qualidades conseguem o florescimento pujante que, no decurso da história, têm distinguido aqueles povos desde o advento do cristianismo.
Mas, para se poder beneficiar do progresso moral e cultural assim alcançado, importa que as verdades custas sejam tomadas como são, no seu significado profundo e integral, e não apenas em aspectos formais ou marginais.
Com efeito, nem as estruturas de que falamos, nem o alento dado àquelas tendências e qualidades dos povos ocidentais podem relegar-se para a categoria de simples aquisições do passado, susceptíveis de medrarem por si, desenraizadas da terra mater onde brotaram À medida em que progridem o materialismo e a religião, os fundamentos da civilização cristã vão sendo abandonados ou transformados em meras práticas de rotina ou fórmulas vazias de conteúdo vivo. E a experiência demonstra que, assim deturpadas e privadas da seiva essencial, essa rotina e essas fórmulas acabam por se erguer contra os valores nelas mesmas expressos - são como os tecidos cancerosos que, tomando súbito e desordenado desenvolvimento, acabam por destruir o organismo de cujo equilíbrio se emanciparam Por isso muitas vezes se tem visto sacrificar, em nome dos valores da personalidade, não apenas alguns aspectos secundários da mesma personalidade, mas a dignidade mesma e até a vida do próprio homem.
Por esse motivo nos parece indispensável, para se compreender a influência decisiva do cristianismo na defesa da personalidade, e nele haurir as luzes cada vez mais necessárias para a firmar, dizer alguma coisa sobre a concepção cristã do homem, e, ainda que em síntese, cumpre fazê-lo quanto possível por forma integral - única verdadeira - e portanto sem mutilar essa concepção e sem ocultar os seus fundamentos especificamente religiosos, pois o esquecimento ou obliteração dela precisamente a transformariam em mentira estéril ou, mais ainda, maléfica e perigosa.
E não nos devem embaraçar neste ponto quaisquer preocupações acerca de eventuais divergências de opinião Trata-se afinal de exprimir aquele clima que anima o nosso povo e o autoriza a vindicar para si a religião e a moral cristas (Constituição Política, artigos 48.º, § 8.º, e 45.º), e a alma dos povos, como a de todos os verdadeiros comunidades, não se restringe ao somatório ou justaposição mecânica das opiniões ou tendências individuais brota da maneira de ser, das inclinações e dos costumes, da experiência, e das tradições, do influxo, enfim, das personalidades que, no passado ou no presente, são intérpretes das ideias e sentimentos colectivos, impulsionadoras da vontade comum e propagadoras da missão a que todos os membros da comunidade hão-de votar-se A comunhão em tais ideias e sentimentos, o comprazer-se coda um na forma de vida por eles inspirado, o empenho em cumprir aquela vontade comum, a todos anima do mesmo espírito, ainda quando a diferença de idade, de condição social e cultural ou de crenças e opiniões não permita a alguns participarem da plena vivência do espírito comum, e todos afinal, sem quebra da verdade individual nem ofensa da consciência própria, se tornam, por este modo, solidários nos benefícios e nos méritos alcançados colectivamente na vida comunitária