438 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
na história devem levar-nos a reconhecer, com Romano Guardini, que o ser do homem não pode exprimir-se pelo simples conceito de «natureza», como sucede com os animais Cada um destes tem a sua «natureza», que contém tudo quanto pertence ao respectivo sei e que, por suas leis, lhe rege todo o desenvolvimento, por isso, o crescimento, a maturidade, a decrepitude e a morte dão-nos n métrica compassada dessas figuras encerradas em si mesmas Pelo contrário, a existência do homem não se realiza pelo desenvolvimento e conservação de uma «natureza», mas sim pelo curso de uma história nele, ele encontra o que existe foi a de si, toma posição, conhece o risco, age e obra, e nesse encontro se determina o seu ser pessoal. A natureza humana é tanto resultado do encontro como é pressuposto dele e por isso a natureza total não se acha no começo, mas sim no termo. A existência do homem não parte de si mesma para a si mesma voltar de novo, como círculo que se fecha sobre si - é antes o arco de cálculo que permite ao homem atingir aquilo que o defronta. Não se trata, insiste-se, das simples relações de permuta em que o animal vive com as coisas que o rodeiam e que são apenas o seu ambiente, a extensão da sua individualidade, se é que não deve dizer-se antes que aquele forma com elas um todo, composto de seres individuais e de. universo ambiente, seja como for, essa totalidade é determinada de antemão por natureza. Em contraste, o homem possui verdadeiro poder de começar, é senhor dos seus actos e integra-se, por foram única, na categoria do «aberto», só ele é capaz de encontro e é a partir deste que indefinidamente ele se realiza (...)
Todas estas facetas da concepção do homem deduzida da Sagrada Escritura nos conduzem, por fim, ao último e mais alto aspecto da transcendência da pessoa humana o ser destinada a Deus Criado em estado de elevado grau de perfeição, o homem não encontro- em si, no entanto, nem o seu fim, nem a sua realização Foi criado para conhecer, amar e servir a Deus e para, através dessa missão, atingir a bem-aventurança de contemplar Deus face a face. Dizer-se isto, porém, não significa que lhe pertença apenas praticar aqui ou acolá, por entre actos desprovidos de sentido divino, alguma boa obra ou prestar á Deus um ou outro acto de culto tudo na vida do homem se destina ao servo-divino - a ciência e a técnica, a contemplação é-o trabalho, a oração, o repouso e o sustento, o matrimónio' e a família, a vida em comunidade, o progresso e a união das gerações através do tempo -, tudo é servir directamente a Deus, tudo representa formas de desvendar as maravilhas do amor criador, de as fazer frutificar e multiplicar, tudo é forma de as difundir pelos outros homens e tudo deve ser feito por cada um em nome de Deus. E não se trata de pôr em acto a vida de um ente mítico, como o deus dos panteístas, mas sim de servir um Deus pessoal, infinitamente bom e justo, que cria cada homem concretamente por um acto de amor, que o faz Seu semelhante e lhe confere uma missão singular no completamento da Sua obra, que o chama à responsabilidade pelo cumprimento dessa missão, mas o ama profundamente e o convoca para R felicidade sem par de com Ele conviver para toda a eternidade.
A própria história só é precisamente tal quando referida àquilo que a transcende e só é verdadeira e só é verdadeiramente humana quando vista perante o modo como começou e como há-de terminar. Se no princípio dela mais não houvesse do que o acaso ou a evolução determinista sem ordenador, ou se, como fim, apenas espetasse de novo o acaso ou o eterno regresso, a história não passaria de produto do acaso ou de um processo terrífico do devir sem termo. O que transforma em história inteligível os acontecimentos a que o homem está submetido e o próprio agir dele é, no começo, a Palavra de Deus e, no fim, um julgamento. «No princípio era o Verbo Tudo foi feito por Ele, e, sem Ele, nada se fez do que foi feito» (Jo I, I, 15). Eis o que dá sentido fecundo à história - o ter sido fundada pelo Verbo criador e confiada ao homem paia que ele a realize Em cada circunstância histórica o homem deve pi acurar compreender a Palavra que Deus lhe dirige estar alerta na história é estar atento a Deus (52).
A singularidade, a autonomia pessoal, o domínio do mundo como representante de Deus e seu administrador em nome d'Ele, a vida em comunidade, a historicidade, tudo são, em resumo, características do homem que lhe conferem profundíssimo valor, mas que só têm verdadeiro significado quando orientadas para Deus, para Aquele que criou o homem e constitui o seu fim e o seu prémio.
O homem é, por essência, uma imitação de Deus e para ele alcançar a perfeição é-lhe essencial agir de acordo com essa semelhança. Toda a tentativa paia se emancipar, paro, autonomizai a existência humana, é, pois, contrária às exigências ontológicas, é violência contra a natureza humana e implica, necessariamente, o envelhecimento final (53).
Assim entroncamos de novo naquele corolário a que já nos conduzira a interpretação metafísica do homem, tal como a apresenta a filosofia perene a de que a sujeição do homem a ética resulta da essência mesma dele - é fruto da exigência ontológica de se realizar por um bem transcendente, na conquista do qual se empenha todo o esforço da autonomia humana, mas que a esta mesma se impõe como razão de ser da própria existência do homem.
Esta ideia acha-se, porém, extremamente enriquecida pela Revelação dista O fim ultimo, para o qual o homem tende por inclinação radical de todo o seu ser, ê verdadeiramente Deus, como já antevia a filosofia antiga Mas não se trata apenas de o homem se entregai à contemplação intelectual do Acto Puro, tão sublime como distante, mas de dispor toda a sua vida paira o cumprimento de uma missão que lhe foi confiada pessoal e singularmente por um acto de profundo amor. E aquela inclinação radical de que falámos não é simples influxo de uma fria lei que leve cada ser, ainda que inconscientemente, a reclamar o bem apto para lhe integrai a forma, é antes um apelo vivo e pessoal de Deus, ditado por amor sem igual, e susceptível de despeitar a semelhança divina do homem e de lhe inspirar a gratidão e o entusiasmo próprios de quem se sabe chamada a convivei com Deus, em intimidade muito superior aquela que permitiriam as forças da natureza. E põe este modo a exigência ontológica do cumprimento do fim último e de ordenação de toda a vida para ele não representa apenas a da privação de um bem necessário ou a atracção exercida pela perspectiva da felicidade é Vim impulso vital nascido das tendências mais nobres do homem, compelidas pela necessidade essencial de prestai a Deus a honra e a glória que lhe são devidas.
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(...) Romano Guardini, Les Fins Dermiros trad francesa, Les Editions du Cerf, Paris, 1951, pp 22 e segs.
(52) Cf. Haring, obra e volume citados, p 181
(...) Cf Schmaus, obra e volume citados p 128