16 DE DEZEMBRO DE 1963 439
Este bosquejo da concepção cosmológica do cristianismo há-de rematar-se portanto, com a seguinte conclusão o homem não contém em si o seu fim nem a sua perfeição e nada há nele que tenha real valor quando olhado em. absoluto, se, todavia, o contemplarmos à luz da sua criação divina e da sua missão sublime para com Deus. ele adquire, ou, melhor, cada homem adquire valor verdadeiramente infinito, só mensurável pelo alto significado da semelhança com Deus.
12. O SIGNIFICADO DA MORTE - Criado assim O homem integralmente para Deus, todo o desenrolar da vida e da história há-de ter por tema fundamental a posição que ele tomar em relação a Deus e as sementes, boas ou más, que essa posição irá lançando no decurso da mesma vida e da mesma história. É nesta perspectiva que, precisamente, se enquadra a concepção cristã da morte, ponto de interesse muito particular para o nosso estudo.
Como se deixa dito, o homem, em vez de viver no círculo fechado de uma natureza, é antes um ser «aberto» destinado a realizar-se pelo encontro com a realidade transcendente. E, como sustenta Romano Guardini, o encontro decisivo do homem é o encontro com Deus, o Real por excelência, e só vivendo como deve esse encontro é que o homem se torna aquilo que o Criador quis que ele fosse (54).
Foi esse motivo, logo nos alvores da humanidade o homem teve de tomar uma decisão fundamental foi criado em alto estado do perfeição, mas essa perfeição foi posta a prova (55) e o homem não quis corresponder ao apelo de Deus - «quis ser como Deus», isto é, viver por si e para si (56), o essa decisão não só lhe corrompeu a natureza, mas quebrou também a união dele com Deus, privando-o dos dons subrenaturais o preternaturais, nomeadamente, de entre estes últimos, do dom cta imortalidade do corpo.
Assim entrou a morte na história da humanidade O primeiro homem não foi apenas o número inicial de uma série de homens, mas o antepassado da raça, trazia-a, pois, em si na totalidade, e a decisão dele fixou-lhe o destino (57), comunicando-lhe paia sempre o peso das consequências da sua falta - o pecado original.
Os materialistas e positivistas vêem a morte como facto puramente natural que representa o fim de tudo para cada homem, os idealistas e espiritualistas, inspirados mais ou menos conscientemente no dualismo ontológico, contra o qual o cristianismo tem lutado desde os seus primórdios e que vá a matéria como fruto do mal, consideram o corpo a prisão da alma e a morte como libertação e condição da felicidade eterna.
Nem uns nem outros correspondem, porém, à intuição e aos anseios de todos os homens Todos sentem haver na morte qualquer coisa de absurdo e de contrário à natureza, todos querem apegar-se a uma esperança que liberte o homem do peso desse destino acabrunhante e todos sentem erguer-se no espírito esta pergunta ansiosa - porquê e para quê existe a morte?
A resposta do cristianismo é muito diversa de qualquer daquelas duas O homem não é só corpo, nem só alma - possuía, antes do pecado original, o atributo da imortalidade corporal, não decerto por imposição da própria natureza, mas como dom gratuito de Deus. Por isso se poderá dizer com Guardini que a morte não tem carácter «natural», mas sim carácter «histórico» (58) definivel não apenas pela natureza, mas também pela história, o homem foi criado na imortalidade, mas rompeu os laços que o prendiam a Deus e, com esse facto, incorreu na pena cuja cominação tinha sido decretada por Deus para o caso de o homem não cumprir o seu mandado o homem passou a estar sujeito à lei da morte e transmitiu à sua descendência o peso terrível dessa falta.
Quão dolorosa seja esta pena só a doutrina cristã acerca da natureza humana no-lo podo revelar plenamente O homem é, por essência, composto de dois elementos. A alma é a lei configuradora do corpo, a «forma» essencial que determina, estrutura e anima a matéria, esta só assim enformada pela alma e sujeita a lei e à força estruturante dela é corpo humano O corpo é, porém, a expressão da alma, e toda a vida do espírito é condicionada pelo corpo (59). A alma não vive autonomamente, antes se actua no corpo e opera por meio dele, a tal ponto que é possível duvidar-se de que na existência humana haja um só acto «puramente espiritual» e de que todos os actos não sejam, antes, ao mesmo tempo espirituais e corporais, isto é, actos humanos, diz-se que a alma está «no corpo» e entende-se por tal que ela é o princípio da vida deste, o conteúdo da sua aparência íenoménica, o sentido histórico do corpo em sua permanência e mobilidade, mas também poderia dizer-se que o corpo «está na alma», no sentido de que esta o contém como instrumento do seu agir, como revelação da sua presença oculta, como lugar, situação e matéria da sua existência histórica, como estrutura e actividade (60).
Por tudo isto se podo concluir quanto a morte tem de trágico e doloroso. Não é simples fim, simples suspensão da continuidade, nem representa mero acontecimento de facto, desprovido de sentido humano Ë, antes, a separação dramática da alma e do corpo, representa a agonia para este, condenado a corromper-se e a ser destruído, mas submete também a dolorosa agonia a alma que, destinada a actuar-se e a viver por esse corpo, passar a estar privada dele sem pordcr, contudo, a vocação para a matéria que ela tinha conformado e sem a qual não poderá exercer muitas das suas operações A morte é, por outra parte, uma pena, um sofrimento imposto como reparação do pecado, sofrimento tanto mais agudo o opressivo quanto se apresenta aos olhos dos homens como em si mesmo absurdo e desprovido de razão de ser natural.
Nesta realidade está, também, não obstante, o sentido positivo, a grandeza da morte Aceitando-a e sofrendo-a como ela é, o homem submete-se pessoalmente à pena universal e nela assume a parte que lhe cabe na expiação do mal que ensombra a história da humanidade Morrer é, afinal, dar testemunho de tudo quanto há de mais profundo e importante no homem, na sua condição histórica actual o bem da vida em toda a sua grandeza, a destinação dessa vida à glorificação de Deus e a oferta desse bem supremo para a expiação das infidelidades dos homens, rejeitar deliberadamente esse testemunho é, por isso, negar todo o valor da vida, enquanto aceitá-la magnânimamente e vivê-la na fidelidade a Deus é o acto mais elevado e nobre de toda a vida.
A morte não ficou, todavia, para sempre reduzida a esta conteúdo, decerto rico, mas dolorosamente desprovido de esperança, porque uma nova luz veio iluminar a terra
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(54) Ibid., p. 24.
(55) Ibid , p. 24.
(56) Ibid , p. 26.
(57) Ibid., p. 27.
(58) Ibid, p 22
(59) Schmaus, obra o volumes citados, pp. 851 e segs.
(60) Guardini, ob. cit, p 101