444 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
Já em fases remotas da ciência jurídica, os cultores dela viam na susceptibilidade de se ser titular de direitos e deveres o sinal jurídico da pessoa, e, movendo-se em ambiente sempre algo saturado de abstracção - em certa medida por efeito da natureza mesma da ciência jurídica -, nunca se esqueciam de advertir que alguns sei es humanos por vezes não foram considerados pessoas, em razão de lhes ser negada capacidade para serem sujeitos de direitos e obrigações - os escravos -, tal como sempre sucedeu que outros entes recebessem da lei, por abstracção jurídica, essa capacidade sem serem homens.
Esta concepção enferma do vício manifesto de identificar a personalidade com a capacidade jurídica, quando, na verdade, esta última é uma qualidade ou atributo que pressupõe uma substância que lhe sirva de suporte, a qual só pode ser a pessoa, na integralidade da sua essência, a própria personalidade de entes meramente jurídicos não deve levar a esvaziai-te o conceito de personalidade de todo o conteúdo substancial para o tornar adaptável a esses entes, antes deve construir-se, separadamente, como realidade analógica, isto é, como realidade que, por analogia (em sentido metafísico), se reconhece participar das características da personalidade humana, sem que, todavia, se possa reduzir a ela e sem que seja lícito formar com uma e outra um só género de que elas sejam espécies.
Seja como for, o certo é, porém, que aquela concepção para a qual a personalidade se identificava, para efeitos do direito, com a capacidade jurídica, uma vez que foi suprimida a escravatura, passou a constituir meia abstracção e deixou de ter em si mesma consequências directamente danosas no fundo os autores - ao tempo geralmente defensores do direito natural - não esqueciam que, por detrás da pessoa jurídica, existia o homem vivo e real, ao qual nunca era negada capacidade, e tanto bastava para tomar essa concepção em princípio inócua. Tal era o pensamento do nosso Código Civil ao estatuir, no artigo 1.º, que só o homem é susceptível de direitos e obrigações e que nisso consiste a sua capacidade ou a sua personalidade jurídica.
O progresso das modalidades de pensamento acima apontadas, acompanhadas de todo o cortejo das doutrinas nas quais elas se inspiram - idealismo, positivismo, pragmatismo, etc -, veio, contudo, alterar o significado desta e de outras abstracções Como é sabido, a abstracção é um método indispensável, pois, enquanto não se elevar acima dos casos concretos, o estudioso não poderá formular conceitos, nem descobrir leis ou princípios, e não exercerá, por conseguinte, actividade científica - non datur scientia do indivíduo, o objecto estudado em cada ciência, em si mesmo considerado, não é, porém, abstracto, mas concreto - concreto na sua realidade ontológica, mesmo quando gerado por abstracção, como sucede com as ideias, os números, os nomes, os inventos, as obras-de-arte, etc Ora o que aconteceu na ciência jurídica foi que, por influxo das referidas modalidades de pensamento, os autores esqueceram estas verdades e deixaram de simplesmente, como lhes cumpris, pensar em abstracto as realidades concretas que estudavam, para passarem a concebê-las como se, efectivamente, elas fossem puras abstracções.
Por esta forma, a personalidade jurídica, mesmo para autores insuspeitos de compromissos com orientações aberrantes, tornou-se simples qualidade abstracta, resultante exclusivamente da acção criadora da toda poderosa lei
São eloquentes, a tal respeito, as palavras com que De Cupis abre o seu livro relativo aos direitos de personalidade:
A personalidade, ou a capacidade jurídica, define-se comummente como a aptidão para se sei titular de direitos e deveres jurídicos, não se identifica nem com os direitos nem com os deveres e não transcende a essência de uma simples qualidade jurídica.
Esta qualidade é um produto do direito positivo, e não uma substância que este encontre já constituída na natureza e que ele se limite a registar tal como a encontra a aptidão para se ser titular de direitos e deveres não é menos vinculada ao ordenamento positivo, e em função dele, do que o são os próprios direitos e deveres (74).
Neste clima pensante o vocábulo «pessoa» - persona -, que tanto se enobrecera no decurso dos tempos, parece querer regressar ao começo da sua carteira semântica, mas com alcance bem pior do que o primitivo: ele que, da velha máscara teatral, passara a designar o papel desempenhado pelo actor e, depois, a função de cada indivíduo na sociedade, para logo vir a representar o próprio homem que o exerce, parece tender agora para se reduzir a simples máscara ou veste abstracta que a lei impõe ou retira como muito bem lhe apraz.
E tão fundo é este abismo cavado entre a teoria jurídica e as realidades humanas que a personalidade, de princípio identificada com a capacidade em abstracto ou mera susceptibilidade de direitos e obrigações (constante e igual em todos os homens), tende em alguns autores a assimilar-se à capacidade em concreto, tornando-se ainda mais i estrita e contingente.
Veja-se, por exemplo, a forma por que De Cupis continua as considerações acima transcritas Afirma ele, como só viu, que sa aptidão para se ser titular de direitos e deveres não é menos vinculada ao ordenamento positivo, e em função dele, do que o são os próprios direitos e deveres», e logo prossegue:
nem sempre e em toda a parte o direito positivo atribuiu aos indivíduos humanos, simplesmente enquanto tais, uma qualificação deste género, e esta, quando o direito positivo lhe dá existência, tanto pode sei geral como circunscrita. Assim, pode acontecer que o ordenamento jurídico atribua a certos indivíduos aptidão para serem titulares apenas de obrigações, e não também direitos, e quando tal aptidão se estende aos direitos, pode ser limitada a determinada espécie destes, em correlação com razões que podem identificar-se com o sexo, com a religião, como ainda com a nacionalidade, a raça, a classe social, e assim por diante (75).
No mesmo sentido parece pronunciar-se Carnelutti, se bem que em termos algo contraditórios Com efeito, referindo-se ao facto de ser característico dos ordenamentos jurídicos modernos o princípio de que todo o homem é sujeito de direitos ou pessoa perante o direito, ele adverte que «tal princípio deve entender-se no sentido de que não há homem algum que não seja sujeito de relações jurídicas, e não no sentido de que a subjectividade ou a personalidade jurídica seja atribuída a todos os homens na mesma medida» e que «há uma quantidade de razões, boas ou más, pelas quais, de homem para homem, tal medida pode variai, e assim um homem pode ser sujeito de relações jurídicas das quais um outro não pode ser sujeito» (76).
E Carnelutti acrescenta ainda mais
A capacidade jurídica é portanto a medida da personalidade jurídica reconhecida a cada homem ou, por
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(74) I Diritti della Personalità, p 15
(72) Obra e lugar citados
(76) Teoria Generais del Diritto, p. 119.