448 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
transcendente, exigência que é a expressão da ordem instaurada por Deus, e portanto da razão e vontade divinas, e que para o homem corresponde à glorificação subjectiva de Deus por entre os outros seres do mundo exterior e os outros homens e que para cada um destes constitui uma missão sagrada e singular que se lhe impõe independentemente da sua vontade ou da dos seus semelhantes, mas que reclama dele a adesão pessoal e livre e que para ele constitui o ideal e a felicidade.
O homem é um ser autónomo Mas não o é porque possa, sem se negar ou se destruir, eximir-se ao cumprimento desse fim último, mas porque a glorificação subjectiva exige a participação pessoal e livre de cada ser humano, segundo os dons e a vocação particular que o distinguem de todos os outros e, na comunidade e no história, lhe conferem uma missão em que ninguém pode substituí-lo O homem é um ser autónomo, mas é dotado desta característica como meio paia atingir um fim sagrado, cujo cumprimento é para ele uma necessidade racional e uma exigência ontológica de todo o seu ser.
De tudo resulta haver no homem três princípios básicos de actuação cuja consideração é fundamental para o nosso objectivo antes de mais, o homem é dominado pela exigência ontológica de realização do seu fim último, exigência comum a todos os seres, mas manifestada no homem acima de tudo pelo apetite racional que constitui a vontade, em segundo lugar, o homem é dotado de autonomia para que esse fim seja exercido com adesão pessoal e a consciência e a responsabilidade próprias de um ser racional e livre, finalmente, evidencia-se no homem a necessidade racional de aplicar a sua autonomia ao cumprimento do fim último, o que representa o dever de ser fiel a esse fim, dever que constitui o elemento coordenador dos dois aspectos antecedentes - é o princípio que vincula e harmoniza a exigência de um fim predeterminado e fixo com a autonomia radical da pessoa humana.
O dever constitui por esta forma um elemento integrante e essencial da própria estrutura da personalidade e representa a participação do homem, como ser racional e livre, na razão e vontade divinas, que são fontes de todo o universo e de toda a ordem nele estabelecida Porque assim é, o dever exprime uma ordem transcendente e absoluta dotada de validade universal, revela, por isso, a existência de uma sei, que não é mais do que a aplicação da lei eterna que rege todo o universo aos actos do homem como ser racional e livre.
A autonomia humana como meio necessário para atingir o fim último implica, porém, a descoberta de mas intermédios que sirvam de caminho paia alcançar esse fim e na determinação dos quais impera a liberdade do homem com o consequente poder de optar e de criar e influi ainda a singularidade dos dons e da vocação especial de cada homem e da missão particular que lhe compete cumprir. O fim último do homem desdobra-se, assim, durante a vida terrena, em fins de pormenor que se escalonam sucessivamente como meios e fins uns dos outros, mas que se têm de hierarquizar e coordenar em função do fim último, correspondentemente a lei revelada pelo dever básico de fidelidade ao fim último desdobra-se em leis ou normas que não são estranhas umas às outras, antes contêm o principio dessa hierarquização e coordenação dos fins humanos e constituem por isso uma ordem, à qual geneticamente podemos dar o nome de ordem ética.
Mas esta ordem não é formada por elementos homogéneos a própria natureza humana impõe que nela se desenvolvam sectores com características diferenciadas.
A natureza humana não revela apenas o devei abstracto de cumprir o fim último, nem, portanto, simples normas de conteúdo formal, como seriam as que impusessem a necessidade de atingir esse fim ou de fazer o bem e evitai o mal. A razão natural apreende espontaneamente diversos princípios que são aplicações necessária e universalmente válidas do dever de fidelidade ao fim último impõe, antes de mais, aquelas regras gerais do honeste vivere (com os seus corolários da necessidade de rectidão de carácter, de lealdade, de boa fé, etc ), do neminem laedere e do suum ourique tribuere, e determina ainda numerosas aplicações do dever básico a aspectos práticos da vida, tais como as normas que impõem o respeito da vida e da honra própria e alheia, a necessidade de viver em comunidade e, portanto, de se realizar o bem comum e de haver autoridade incumbida de o promover e defender, a necessidade da família e do casamento monogâmico, a garantia do acesso a propriedade e à efectiva liberdade de a fruir, como meio de assegurar a autonomia pessoal e da família, etc.
Ora, desde que tais princípios se mostram como consequências racionais e necessárias do dever de fidelidade ao fim último, participam da obrigatoriedade deste e apresentam-se à consciência como ditames de Deus, criador e ordenador da natureza humana Por esta forma essa natureza revela um conjunto de princípios, de verdadeiras leis obrigatórias e universais, que constituem a lei natural
Esta lei abrange, todavia, apenas os princípios que se mostrem evidentes e necessários a todas as consciências rectas e esclarecidas e não autoriza, por isso, a defendei, em nome da natureza - como pretendeu o jusnaturalismo setecentista -, simples aplicações de pormenor, apenas aconselháveis segundo as circunstâncias ou critério pessoal de alguns homens, por mais ilustrados e honestos que sejam.
À vida da comunidade e a realização do respectivo bem comum não são, contudo, possíveis sem que se especifiquem todas essas aplicações de pormenor dos princípios da lei natural às circunstâncias especiais da vida, e, portanto, na medida em que têm de ser ajustados às condições particulares de cada comunidade, ou em que podem variar cora as opiniões individuais, ou até na medida em que é necessário optar-se arbitrariamente entre várias orientações, entre si incompatíveis, mas igualmente aceitáveis em princípio (pense-se, por exemplo, na escolha do lado direito ou esquerdo da via pública para a circulação dos veículos) Em muitos casos a experiência e a prática continuada de certas orientações geram na comunidade a convicção de que essas orientações exprimem o que é justo, motivo pelo qual elas passam a beneficiar da obrigatoriedade imanente na ideia de justiça e a constituir verdadeiras leis ou normas, ditas consuetudinários em razão daquela sua origem Mas sempre que - como hoje é regra - não se formam essas normas, o bem comum exige que alguém fixe os princípios reguladores desses aspectos da vida social não directamente regidos pela natureza, e é logicamente à autoridade que o compete fazer, visto sei missão dela promovei e defender o bem comum, e precisamente porque a lei natural exige a comunidade e a autoridade, esses princípios ditados por esta assumem o carácter de verdadeiras leis, cuja obrigatoriedade não decorre do seu conteúdo intrínseco (em si mesmo contingente), mas sim do facto de serem necessárias por foiça da própria natureza do homem e da comunidade por ela exigida.
São estos as leis positivas, as quais, em virtude do seu mesmo fundamento e função, têm de conformar-se à lei natural, cujos princípios sempre hão-de estar presentes,