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446 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51

sido causa das maiores deformações e deturpações em numerosos sectores da teoria do direito, desde o desconhecimento pi ático da base ética do direito e da entidade e dinamismo vivos da ordem jurídica, até a ignorância da comunidade como forma da vida jurídica (84), ao desprezo das relações entre o homem e a norma, à obliteiocao dos chamados «direitos absolutos», como os direitos reais e os de personalidade, etc. O que em particular nos interessa aqui é apenas, todavia, o ponto precisamente posto em evidência nas citadas palavras do Prof Cabral de Moncada a circunstância de, à luz desta orientação, o sujeito de direito só sei compreensível como elemento da relação jurídica.
De tanto se esvaziar o conceito de pessoa, reduziu-se a alteridade, própria dela, a existência de relações de direito entre os homens Mas, posto assim o problema, insensivelmente se é levado a colocar a relação logicamente antes da ideia de pessoa, e esta passa, portanto, a só ser caracterizável pela posição que ocupa nas relações jurídicas.
Sucede, porém, que os sujeitos não são os únicos elementos constitutivos da relação, e é neste ponto que, precisamente, se vai inserir a consequência mais danosa que esta construção introduz no nosso tema.
No clima de pensamento cujos tópicos fundamentais temos vindo a apontar, os homens viveriam, em princípio, isolados uns dos outros ou como tais seriam vistos pelo direito Mas as actividades humanas incidem sobre o mundo exterior, portanto sobre um terreno comum, donde proviriam inevitáveis «conflitos de interesses» e a função do direito consistiria em resolver esses conflitos, demarcando o campo da liberdade dos homens, ou seja atribuindo direitos a uns e deveres a outros Assim nasceriam as relações jurídicos, as quais teriam, por isso mesmo, como tem de luta ou de colaboração, um objecto exterior, uma como
«Coisa» era, numa formulação mais antiga, tudo aquilo que não tinha personalidade (cf. o artigo 369.º do Código Civil). Cedo, porém, os autores advertiram em como este conceito era demasiadamente amplo e, por motivos análogos aos que presidiram a evolução da ideia de pessoa, passaram a delimitá-lo por uma circunstância formal, a de a realidade considerada ser objecto de direito coisa seria tudo aquilo que fosse susceptível de ser objecto de direito, conceito quando muito delimitado negativamente pela figura da «prestação», sem interesse para o nosso objectivo.
De princípio, este conceito de coisa era, explícita ou implicitamente, aplicado apenas às realidades desprovidas de personalidade entender-se-ia por «coisa» tudo aquilo que, não tendo personalidade jurídica, fosse susceptível de ser objecto do direitos.
É evidente, todavia, que em tal noção há um vício grave, desde que se aceitem os postulados em que ela se funda se a noção de coisa se deduz fundamentalmente da posição de objecto que as realidades exteriores ocupam na relação jurídica, isto é, se ela é delimitada por uma função extrínseca, que, por seu lado, só tem sentido quando contraposta à situação da .pessoa, é óbvio não ser
lícito excluir-se da ideia de coisa aquelas realidades que, na relação jurídica, ocupem a posição de objecto, e não a de pessoa Por outras palavras se as noções de pessoa e de coisa não têm conteúdo próprio e apenas são definiveis pela situação que ocupam nas relações jurídicas - situação de sujeito ou situação de objecto -, não é lógico restringir-se a ideia de coisa para, do seu âmbito, se excluírem quaisquer realidades que, nessas relações, desempenhem o papel de objecto, e entre essas realidades, dirão os seguidores da orientação em exame, estão as próprias pessoas.
Eis, portanto, o resultado para que a doutrina se deixou arrastar ao lançar-se no perigoso declive do formalismo o próprio homem pode ser «coisa», se ocupar nas relações jurídicas a posição de objecto E com isto se quebram as, últimas amarras que prendiam a personalidade ao homem - tudo se perde na voragem da abstracção pela abstracção e do esquecimento da essência e do valor intrínseco dos seres humanos.
A exposição que deixamos feita não representa - mais uma vez o acentuamos - uma teoria pròpriamente dita, susceptível de ser imputada a este ou àquele autor. O nosso intuito foi somente o de recolher e estruturar os elementos disseminados pela doutrina corrente, por modo a formar como que uma imagem composta desta última, poderá suceder que ela não coincida precisamente com o pensamento de determinado ou determinados autores, mas - disso estamos convictos - essa imagem traduz com suficiente aproximação o conjunto da doutrina, tal como pode surpreender-se, por assim dizer, pela sobreposição das formulações correntes dos autores. E, aliás, variável a parte que cada um toma na formação desta corrente de pensamento alguns formulam-na expressamente em termos lógicos (85), outros revelam aceitá-la conscientemente, se bem que deixando implícitas algumas premissas utilizadas, outros ainda limitam-se a perfilhar ns conclusões desta orientação sem lhes aprofundarem os fundamentos, e não falta sequer quem, norteando-se em geral por directrizes decisionistas ou normativistas - e concorrendo portanto para as difundir -, evite, por motivos extrajurídicos, os corolários mais extremistas a que elas deveriam conduzir.
O certo é que, no clima criado pelo decisionismo e pelo normativismo logicista, a «coisificação» do homem en-

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(84) Dai resulta como manifestação tão grave como típica, o parcelamento da família em meras relações inorgânicas (já em radical oposição às ideias de Savigny - cf. Traite, I, pp 889 e segs ) e até a negação da autonomia do direito de família com o fundamento de ns relações, por ele regidas, se poderem reconduzir a outros tipos conhecidos, como era opinião, por exemplo, do Prof José Tavares, in Os Princípios fundamentais ao Direito Civil, vol I, 2.ª cd, Coimbra Editora, Lda. Coimbra, 1930, p 295.
(85) Uma das formulações mais características e harmónicos desta corrente é a de Carnelutti (Teoria Generale, pp 107 e segs , 111 e segs , 114 e segs e 125 e segs ). Não podemos expô-la, mesmo resumidamente, pois ultrapassaria os limites naturais deste parecer, mas não queremos deixar, pelo menos, de dar acerca dela uma pequena notícia, para ilustrar as considerações feitas no texto.
O ponto de partida de Carnelutti é a «situação jurídica», realidade resultante da contraposição de duas «partes», em virtude de ambas se acharem numa relação de interesse com o mesmo bem ou coisa, a situação jurídica tem, pois, três elementos, «partes», «bem» e «relação jurídica», entendendo-se por esta a ralação que liga, duas pessoa» em conflito do interessa sobre uma coisa A relação jurídica não nos aparece, assim, como n realidade global, mas sim como um dos elementos desta; trata-se, no entanto, ao simples divergência de terminologia, pois a «situação jurídica» é precisamente o mesmo que usualmente se designa por «relação jurídica», e o próprio Canelutti observa que, residindo a juridicidade da situação jurídica naquele elemento a que chama «relação jurídica», esta expressão se emprega com frequência pêra significar a própria situação (ob cif , p 110).
Ê pela análise da situação jurídica, assim entendida, e usando conceitos formais que Carnelutti procura afinar as noções de «pessoa» e de «coisa». Daí resulta que, embora reconheça como características essenciais da pessoa a autoridade e a liberdade, e diga até que só a pessoa possui a propriedade de se expandir para fora de si mesma, o que não pode explicar-