450 ACTAS Dá CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
Para nós a distinção rigorosa entre a moral e o direito é aquela que pode deduzir-se da doutrina de Santo Tomás acerca do justo e da virtude da justiça (SR), e que assenta no objecto de cada um desses sectores da ética e' na perspectiva por que esse objecto é encarado.
A moral ocupa-se de todas as virtudes morais e tem como preocupação dominante o aperfeiçoamento de cada um dos homens a que se dirige como meio de os conduzir à salvação.
O direito ocupa-se da justiça, a qual é uma virtude orientada para outrem, ad alterum (89). A preocupação dominante dele não é aperfeiçoar o homem por ele visto como agente, mas garantir aquilo que pertence a outrem, e tem em vista, por conseguinte, assegurar a cada um o que lhe é devido, o suum cuique tribuere (90).
Esta distinção baseia-se no reconhecimento de que as acções do homem para consigo mesmo são suficientemente rectificadas pela correcção das paixões, operada pela generalidade das virtudes. Mas as acções referentes a outras pessoas necessitam de rectificação especial, não apenas a respeito do agente, mas também daquele a quem se dirigem, e por isso tem de haver acerca delas uma virtude especial que é a justiça Tal é o motivo por que a justiça exige sempre a É claro que a moral tem de preocupar-se com a justiça, pois não pode haver aperfeiçoamento pessoal nem salvação sem o cumprimento da justiça For isso esta é uma virtude (92), e uma virtude preclara entre todas, visto fundar-se na vontade e, portanto, nos aspectos mais nobres da alma, e ainda por se referir não só ao agente, mas também a outrem (92).
Por seu lado, o direito não pode desconhecer as outras virtudes, antes, as tem de prescrever na medida em que a observância delas constitui dever de cada um para com os outros homens À justiça deve, até, reconhecer-se como virtude geral, por isso que, sendo o homem parte da comunidade, o bem de todas as virtudes, seja referente ao agente, seja-o a outras pessoas singulares, é sempre referível ao bem comum (94). Por isso todas as virtudes têm de ser ordenadas para o bem comum por uma virtude especial que é precisamente a justiça, tomada na modalidade particular a que se dá o nome de justiça legal (95).
É diversa, porém, como se disse, a perspectiva por que a moral, por um lado, e o direito, por outro, se ocupam das virtudes que não são seu objecto especifico A moral preocupa-se com a justiça por causa do bem do agente a rectidão para as virtudes prescritas por ela apura-se em relação ao agente por um meio termo, um médium rationis, entre as paixões internas (96). O direito quando impõe a justiça tem em vista, principalmente, as acções exteriores (99), e por isso o meio termo que define a virtude tem na justiça a natureza de real e objectivo (98), susceptível de se determinar independentemente da forma por que o agente o realiza (9U) Este facto não prejudica, aliás, a natureza de virtude moral atribuída a justiça pois que o medium rei, pelo qual ela se determina, é também um médium rationis, e por isso não falta na justiça a raao vtrtutis moralis (10º), o caracter de real, próprio do meio termo da justiça, significa, no entanto, que esta virtude tende, acima de tudo, a garanta às pessoas diversas do agente aquilo que lhes é devido.
A moral e o direito têm por conseguinte, a mesma natureza e fundamento, mas versam sobre objectos específicos diferentes e encaram-nos por perspectivas diversas. Daí resulta que, embota indissoluvelmente unidos na base, quando se desdobram em normas de pormenor por forma a constituírem «ordens» positivas, tendem a apresentar caracteres diferentes, e tanto mais diferentes quanto mais se aproximam das normas da periferia A moral, tendendo ao aperfeiçoamento e salvação daquele a quem dirige os seus ditames, tem em vista tudo quanto é necessário para esse objectivo, incluindo a justiça, mas abrange os sectores íntimos da personalidade, e não só se ocupa dos deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo, mas pode até estender, analógica e metaforicamente (101), a ideia de justiça aos deveres para com Deus e do agente para consigo próprio, bem como a atitude interna de cada um para com os outros (justiça nos pensamentos) Por este motivo, a moral tem extensão muito mais vasta do que a do direito, mesmo no tocante a justiça, em compensação, tem de confiar no mérito e na responsabilidade, e, por isso, não pode ser demasiadamente pormenorizada, antes tem de, nas aplicações concretas, deixar ampla margem & consciência moral, orientada pela virtude da prudência, à qual compete determinar os meios necessários ao exercício das outras virtudes e fixar o justo meio entre todas elas(102), e por isso mesmo, também, a moral não pode ser assistida de coacção Finalmente, os preceitos morais tendem a apresentar-se como universalmente válidos.
O direito, tendo em vista garantir às pessoas diversas do agente aquilo que lhes é devido, apresenta objecto mais i estrito - apenas aquilo que exige e permite essa ideia de garantia (a justiça propriamente dita e os aspectos das outras virtudes enquanto reclamadas pelo bem comum) Como a moral, necessita de recorrer, também, a consciência moral, visto lhe interessar em muitos casos a adesão viva e sincera do homem ao dever, e por isso considera até aspectos básicos da personalidade (pense-se, por exemplo, nas teorias criminalistas da culpa na f01 mação da personalidade e dos tipos normativos de autor, no princípio da boa fé, etc), e em muitos sectores tem de confiai a observância de muitas das suas normas ao cumprimento de deveres genéricos, orientado pela prudência (dever de diligência, de perícia profissional, etc). Mas pode, em certa medida, abstrair do mérito e do demérito e, portanto, determinar directamente as aplicações pormenorizadas pela simples prudência do legislador ou pela mera referência à diligência média e recorrer à concessão externa, nessas aplicações de pormenor depende estritamente das condições concretas e das opiniões e critérios da autoridade, e por isso tende a dividir-se em «ordens» positivas, privativas de cada comunidade, ordens que não constituem simples ramificações ou subdivisões do direito, como se poderiam observar na moral (moral familiar, moral internacional, moral profissional, etc), mas verdadeiros sistemas integrais (isto é, com a pretensão de abarcar a generalidade de aspectos da vida), autónomos (isto é, dotados de dina-
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(...) Summa Theologica, II-I, q 57 e 58
(...) Ibid, q 58, art 2, resp
(...) Ibid, II-II, q 57, art 1 e 58, art 1 e 11
(91) Ibid, q 58, art 2, resp e ad 4
(92) Ibid, q 58, art 3
(93) Ibid, q 58,art 12, resp
(94) Ibid, q. 58, art. 5 resp.
(95) Ibid, q 58, art 6, ad 4
(96) Ibid, I-II q 60, art 2, resp e q 64, art 2, resp; II-II, q. 57, art. 1, resp e 58, art 10, resp.
(97) Ibid, I-II, q 60, art 2, resp e q 64, art. 2, resp II-II q 58, art 8, resp e art 9, ad 2 e art 10, resp
(...) Ibid, q 58, art 10, resp
(...) Ibid, I-II, q 60, art 2, resp; II-II, q 57, art. 1, resp
(100) Ibid , II-II, q 58, art 10, ad 1
(101) Ibid , II-II, q 58, art. 2, resp e ad 1 e 2
(102) Ibid , II-II q 47, art 5 e 6.