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16 DE DEZEMBRO DE 1963 455

Pelo contrário, a autonomia e o dever silo manifestações da própria exigência ontológica, tal como ele se apresenta no ser humano para a realização do fim de glorificação subjectiva de Deus, só atingível mediante a consciência e a liberdade. Estes dois princípios respeitam, pois, a actuação livre do homem para a satisfação da própria exigência ontológica da realização do fim ultimo
Quer isto dizer que essa exigência ontológica é uma pura potência, enquanto a autonomia e o dever são essa mesma potência posta em acto, tal como ela se apresenta encarnada na actividade livre do homem.
Sendo assim, é óbvio que o direito, enquanto se destina a orientar o homem, tem por objecto directo a autonomia e o dever Deve nortear-se, como á evidente, pela exigência ontológica na qual assenta o próprio fundamento; mas, na medida em que pretende dirigir a actividade livre do homem, deve incidir sobre aqueles dois princípios de actuação que, precisamente, são manifestações dessa actividade - a autonomia e o dever À função do direito, examinada por este prisma, consistirá, portanto, em definir* aquilo que o homem pode fazer ou não no exercício da autonomia, isto é, em reconhecer-lhe o poder ou faculdade moral de agir ou não agir, e impor-lhe a necessidade racionai de agir ou não agir por forma que o exercício da autonomia se ajuste ao fim último, o que redunda em impor-lhe o dever de agir ou não agir por certa forma.
Significará isto que toda a actuação do direito se reduz em conferir poderes e em impor deveres?
É essa a concepção corrente, resultante - posto que por vias diversas - do normativismo e do positivismo.
Nessa concepção o direito reduzir-se-ia a um conjunto de normas que, genérica e abstractamente, definiriam poderes e deveres, e estes mesmos não seriam mais do que o verso e reverso da mesma realidade - a sobreposição de uma vontade ou interesse a outra vontade ou interesse - previstos como meios de resolver conflitos de interesses e de os transformar em relações jurídicas Dal o afirmar-se que existe directa e exacta correspondência entre as leis e o direito tal como á vivido em concreto pelo homem, o que constitui o ponto de partida para aquela tendência doutrinária, atrás assinalada, para se estudarem as realidades jurídicas como se elas fossem puras abstracções, em vez de elas serem estudadas em abstracto, sim (como impõe a natureza da ciência), mas sem se perder de vista que elas, na verdade, existem em concreto E nesta forma de pensamento se gera igualmente o geometrismo jurídico, inspirador das maiores deformações da doutrina, como sejam aquelas que levam a esbater-se a diferença profunda que separa as pessoas das coisas.
Modernamente a doutrina jurídica tem reagido por forma sensível contra este abstraccionismo e geometrismo, inclinando-se para uma concepção concreta do direito e da ordem jurídica. Em geral, essa tendência á mais adequada à realidade, mas origina um risco sério de, no campo do direito, se cair numa espécie de concretismo, semelhante à chamada «moral de situação», o que arrastaria afinal para a própria negação do direito como ordem geral
A concepção personalista que vimos expondo leva-nos a repudiar tanto o abstraccionismo puro quanto esse novo concretismo jurídico. Fortando-se dela, ser-se-á levado a reconhecer no direito dois aspectos essencialmente interdependentes e complementares que correspondem àquilo que pode haver de verdadeiro em cada uma daquelas posições extremas.
For um lado, não pode deixar de se aceitar que a realidade jurídica em si mesma é concreta.
Antes de mais, á essa a conclusão imposta por todas as considerações anteriores O direito é um elemento estruturante da personalidade e esta é essencialmente concreta - é a realização de uma essência comum numa existência singular e concreta A personalidade existe para um fim concreto, definido pela vocação - a missão concreta por meio da qual cada homem há-de contribuir pessoalmente para a realização do fim último em que todos são chamados a comungar. A exigência ontológica da realização desse fim, imanente em cada homem, bem como a autonomia e o dever de fidelidade aquele fim, apresentam necessariamente tonalidades concretas correspondentes a essa vocação. Finalmente, em razão de tudo isto, o primeiro elemento de estruturação da ordem jurídica é a pessoa humana tomada em concreto, e as coisas, que concretas são, só entram no mundo do direito em virtude da posição que ocupam perante o homem e como objecto do senhorio deste sobre o mundo exterior.
Mas há mais ainda Tentando-se aprofundar a ideia de que a função do direito, como princípio orientador do homem, se traduz em conferir poderes e em impor deveres, verifica-se que estes redundam na apreciação de actos humanos - tudo está em reconhecer que certos actos são lícitos, e portanto permitidos, ou obrigatórios, logo devidos, ou ilícitos, e por conseguinte proibidos. Acontece, todavia, que os actos humanos não têm significado ético sem se considerar o fim concreto para que são praticados; o acto de entregar a outrem certa quantia em dinheiro, por exemplo, pode ser, consoante o fim em vista, um acto lícito de empréstimo, ou depósito, ou doação, como pode ser um acto devido, de pagamento, como pode constituir até o acto ilícito e criminoso de suborno, de mandato criminoso, etc, e se procurássemos qualificar o acto de matar outro homem, necessariamente teríamos de averiguar qual o fim que o norteia, para sabermos se se trata do acto lícito de legítima defesa, do acto devido por um carrasco, em países onde haja pena de morte, ou antes do acto criminoso de homicídio, com todas as suas variadas formas por vezes dependentes de fins especiais, como no caso do crime de roubo com homicídio; e até os actos praticados para um fim genericamente lícito podem ser proibidos quando constituam abuso de direito.
A significação ética dos actos depende ainda do objecto em que recaem e das circunstancias em que são praticados, actos há que, por exemplo, são lícitos quando praticados pelo proprietário sobre coisa própria e que seriam ilícitos quando dirigidos a coisa alheia, mas que, neste último caso, também podem ser lícitos perante determinadas circunstâncias (por exemplo, o corte de ramos de árvores de prédios vizinhos, quando ultrapassem a respectiva estrema)
Recorde-se, finalmente, que o desenvolvimento das leis, a partir do preceito básico revelado pelo dever de fidelidade ao fim último, se faz por desdobramento deste fim, e portanto mediante a especificação da própria exigência ontológica relativamente a cada um dos fins de pormenor em que aquele se decompõe; e é neste enquadramento, tão concreto como esses fins de pormenor, dependentes da autonomia e da orientação particular da vida de cada homem, que se hão-de integrar os poderes e deveres que lhe são outorgados pelo direito
E se voltarmos de novo a atenção para a forma como Santo Tomás constrói o direito e a justiça, veremos que para ele o objecto da justiça é o j«a, entendido como algo de objectivo e concreto, pomo um médium rei estabelecido entre as operações ou coisas exteriores e uma pessoa, algo que dá a medida da justiça em relação a essas operações ou coisas perante tal pessoa, e se traduz, para esta, no «um, no quo lhe é devido O fulcro do direito e da justiça reside, portanto, em alguma coisa de concreto - um meio real -, e não em normas abstractas ou em atitudes subjectivas, seja de quem for.