458 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
perante a nossa exposição anterior, como sendo precisamente um daqueles fins em que se desdobra o fim último e supremo do homem Quer essa finalidade particular seja absoluta, no sentido de ser exigida pela natureza, quer resulte da autonomia e poder criador do homem, sempre ela se apresentará, como fim humano que é, como um daqueles fins intermédios em que o homem tem de desdobrar o seu fim último para o atingir. Esses fins integram-se, portanto, na exigência ontológica da actuação da personalidade pelo cumprimento do fim último.
Por outro lado, a função do direito no seu desenvolvimento e desdobramento em leis de pormenor consiste exactamente em orientar o homem por forma que, na realização dos seus fins de pormenor ou intermédios, ele exerça a autonomia própria em conformidade com aquela exigência ontológica, isto é, em harmonia com o dever de, em toda a sua vida, ser fiel ao fim supremo.
De tudo deve concluir-se que, quando a lei garante a utilização de certo bem para determinado fim, o que faz é assegurar a satisfação de um aspecto a exigência ontológica da realização do fim último O direito subjectivo consiste fundamentalmente, portanto, e seja qual for a construção técnica que dele se faça, numa explicitação da exigência ontológica de realização do fim último ou, o que é o mesmo, de actuação da personalidade humana.
A lei não cria, propriamente, o direito subjectivo. O que ela faz é recortar, da exigência ontológica de realização do homem, certo aspecto respeitante a determinado fim de pormenor, para lhe garantir a satisfação nesse aspecto Â. matéria do direito subjectivo existe no próprio homem e é inseparável dele, mas necessita de ser desdobrada e dinamizada em relação a um fim de pormenor e aos meios para ele utilizáveis, e a função que a lei desempenha no tocante ao direito subjectivo consiste, precisamente, em concretizar ou explicitar certo aspecto da exigência ontológica para, no respectivo âmbito, garantir a satisfação de uma finalidade capaz de a integrar.
Recorrendo-se aos elementos técnicos acima referidos, podemos dizer que o direito subjectivo consiste num aspecto ou manifestação da exigência ontológica da actuação da personalidade que a lei explicita e garante mediante a afectação jurídica de certo bem a uma finalidade capaz de integrar esse aspecto da mesma exigência.
Nesta noção podem abranger-se os próprios «direitos de personalidade», desde que se enquadrem na ideia de «bem» realidades imanentes no próprio homem. Esses «direitos» são aspectos, imediatos como se viu, da exigência ontológica de integração do homem, e são concretizados e garantidos pela lei mediante a afectação das próprias potências ou faculdades humanas (vida, liberdade, etc) à consecução de uma finalidade capaz de integrar esses aspectos da exigência. É certo que ao por analogia se pode dizer que tais potências ou faculdades constituem «bens» utilizáveis pelo homem, mas a verdade é que em todo o mundo jurídico constantemente deparamos com realidades irredutíveis umas às outras, mas que participam todas na razão comum do jurídico e que é a ideia de justo, realidades que por isso não podem confinar-se num mesmo género, mas são análogas e justificam um tratamento semelhante e até, frequentemente, o mesmo nome E neste campo da analogia, os chamados direitos de personalidade merecem bem o nome de direitos, pois, mais do que nenhuns outros, representam realidades inerentes ao homem e que lhe são indispensáveis como meios para integrar o seu fim último.
Esta aproximação dos chamados direitos de personalidade dos restantes direitos subjectivos serve, ademais, para acentuar um ponto que se deve pôr em relevo para a plena compreensão dos direitos subjectivos.
Como tudo o que é jurídico, sem excluir a própria personalidade e capacidade, os direitos subjectivos só têm sentido quando referidos ad alterum. Esta característica corresponda, todavia, a um elemento constante e universal do jurídico, e não serve, por tal motivo, para caracterizar figuras de pormenor como a do direito subjectivo Em certos casos, este exige a colaboração especial de pessoas diversas do titular, mas, quando tal acontece, essa colaboração vem adicionar-se à respeitabilidade geral das situações jurídicas, na qual mais propriamente se concentra a referência genérica do direito a outrem, noutras hipóteses, pelo conttrário, aquela colaboração pode ser dispensável, por isso que a noção de direito subjectivo, em si mesma, não impõe qualquer relação especial com outra pessoa - para se dar a afectação jurídica que estrutura o direito subjectivo bastam, em princípio, os poderes conferidos ao titular e, quando muito, a garantia resultante dos poderes e deveres genéricos inerentes à personalidade.
Estas considerações encaminham-nos para a descoberta de novos tipos de situações jurídicas.
Ao estudarmos a personalidade humana, verificámos que ela apresenta dois aspectos fundamentais. Por um lado, o homem autopossuir-se e é autónomo, aspectos que revelam constituir ele um ente essencialmente singular e distinto dos outros, com finalidade própria em cujo cumprimento ninguém pode substituí-lo. Por outro lado, porém, o homem é dominado pela necessidade de se transcender a si mesmo, o que, entre outros aspectos, se manifesta na tendência para o encontro com os outros homens - nessa necessidade de se aproximar dos outros, de viver os problemas deles e de cooperai na salvação deles.
Ora, nos tipos de situações concretas até agora examinados - e pressuposto, embora, o carácter integral do fim humano, no sentido de abranger tanto o bem próprio como o alheio - o que encontramos é predominantemente a afirmação daquele primeiro aspecto da personalidade E isso, com efeito, aquilo que directamente ressalta da consideração da personalidade e da capacidade jurídica em si mesmas - são aspectos do homem singularmente considerado, os poderes e deveres genéricos implicam apenas referências abstractas a outrem, e por vezes respeitam imediatamente ao próprio sujeito, como no dever de viver honestamente, por fim, u, noção de direito subjectivo não exige de per si, como se disse, qualquer colaboração especial de outras pessoas.
Como é evidente, porém, o segundo dos aspectos da personalidade atrás citados também reclama satisfação pelo direito o homem necessita de colaborar, por forma especial e concreta, com os seus semelhantes e a experiência demonstra que, na verdade, os homens se colocam em situações particulares, nas quais se vinculam reciprocamente por meio de poderes e deveres, com vista a um resultado de conjunto que só podem atingir convenientemente pela colaboração de uns com os outros.
Nesta ordem de ideias, e para não citarmos por agora senão uma figura clássica, se enquadram os «contratos», categoria essa relacionada com a ideia de um acordo pelo qual duas ou mais pessoas entre si estabelecem poderes e deveres especiais como meio de se assegurarem mutuamente vantagens que umas podem proporcionar às outras ou transferem entre si algum direito, ou por outra forma garantem reciprocamente qualquer cooperação na realização dos fins demandados por cada uma delas ou por todas em conjunto.
Numa visão ontológica do direito, surgem-nos, pois, dois tipos fundamentais de situações, correspondentes aos dois aspectos da personalidade que deixámos assinalados Por um lado deparamos primeiramente com situações desti-