16 DE NOVEMBRO DE 1963 463
ficado literal da preposição in, usada com acusativo para com, a respeito do, com respeito a (...), significado que em português se traduz bem pela locução para com, combinação de preposições que, precisamente, substitui in com acusativo a exprime disposição de ânimo em relação a alguém ou algo(109)
Assim, pois, como se diz «severidade para com os perversos», «indulgência para com os ignorantes», «veneração para com os pais», «deveres para com a pátria», podemos dizer, embora seja terminologia fora de uso, direitos para com as pessoas.
Jura in personam ou direitos para com as pessoas, eis, por conseguinte, a denominação correcta dos impropriamente chamados direitos sobre pessoas
Fará concluir esta análise, importa pôr em evidência a natureza comunitária dos direitos para com as pessoas.
Que estes direitos se desenvolvem no seio de comunidades á ponto que logo de começo pusemos em evidência e é ele que nos explica a natureza particular de tais figuras.
Como tivemos ocasião de dizei, a comunidade á uma forma de associação de pessoas em que estas se unem num «nós», comungando indistintamente num bem comum
Na comunidade, muito mais intensamente do que noutros tipos de situações, pesa sobre os direitos subjectivos e sobre as relações jurídicas a fusão do bem próprio de cada membro com o bem de outras pessoas, sem possibilidade de se distinguir o que é fim de uns ou de outros ou o que é favorável a uns ou a outros.
Daí derivam aqueles desvios de regime impostos a direitos subjectivos e a relações jurídicas, a que acima aludimos, assim como aquelas figuras híbridas a que também fizemos referência - os direitos reflexos, os interesses legítimos e os deveres comuns sem titular fixo.
Ora tudo quanto temos exposto acerca dos direitos para com as pessoas nos mostra que eles constituem mais uma figura híbrida destinada a realizar o bem comum em que todos os membro» da comunidade participam e no qual não pode discernir-se qualquer coisa de exclusivo relativamente a algum deles.
Na verdade, esses direitos, numa primeira categoria, destinam-se a fins 4o sujeito passivo, que por deficiência deste têm de ser satisfeitos independentemente da vontade dele ou até contra essa vontade, nestes casos o sujeito passivo está, quanto ao fim, na posição de titular de direito, enquanto o titular propriamente dito se encontra em relação a esse fim na posição de pessoa obrigada, mas aparece também como titular de direito, porque ele pessoalmente (ou a comunidade por ele representada) participa naquele fim como próprio e necessita, para bom de si mesmo, de que ele seja satisfeito.
Nas outras modalidades de direitos para com pessoas verifica-se, mutatis mutandie, fenómeno semelhante Em todos os casos eles se explicam pela reunião na mesma pessoa de interessado em certo fim e de chamado a cumpri-lo, o que é sempre justificável pela solidariedade dos membros da comunidade e pelo carácter por assim dizer difuso do bem comum.
A natureza dos direitos para com pessoas é, pois, análoga à dos interesses legítimos e dos deveres comuns não encabeçados em sujeitos determinados Repare-se que estas duas categorias surgem muitas vezes combinadas, dando lugar a situações complexas de estrutura muito semelhante à dos direitos para com presta assim, todos os membros da comunidade têm conveniência e necessidade de defesa colectiva ou de garantias da saúde pública (interesses legítimos), mas -precisamente porque isso faz parte do bem comum todos têm, em princípio, o dever de assegurar esses fins, e por isso a posição de titulares ou de sujeitos passivos resulta apenas de em casos concretos se abstrair de um ou do outro aspecto; e em casos extremos aquela necessidade comum pode implicar poderes sobre pessoas (por exemplo no caso de vacinações forçadas), o que bem mostra a homogeneidade profunda de todas estas situações.
De tudo se infere que os direitos para com as pessoas são essencialmente diversos dos direitos sobre coisas.
As coisas estão sujeitas a direitos em consequência do senhorio do homem sobre o mundo exterior e para a consecução de fins extrínsecos, exclusivos do mesmo homem.
Em contraste, os direitos para com as pessoas resultam da intensificação do carácter comum dos fins demandados pelos membros da comunidade e, consequentemente, pela intensificação de um dos traços profundos, da personalidade humana, que é o encontro e a cooperação com os seus semelhantes. E se, por vezes, nessa cooperação parece esbater-se a individualidade do sujeito passivo, tal não resulta da assimilação às coisas, senão de se acentuar a interdependência e solidariedade dos membros da comunidade.
§ 4.º Aplicação da concepção personalista aos problemas jurídicos do cadáver, em geral, e no objecto do projecto, em particular
23. NATUREZA JURÍDICA DO CADÁVER - Finda esta digressão pela concepção personalista do direito, que saiu, talvez, demasiadamente longa para um trabalho como este, mas nos parece realmente frutuosa, podemos entrar, agora, nos problemas específicos do nosso tema, começando pelo da natureza jurídica do cadáver.
«Natureza jurídica» é, segundo se disse, a essência de uma realidade jurídica, enquanto princípio das manifestações dela no mundo do direito Perguntar-se qual seja a natureza jurídica do cadáver equivale, pois, a perguntar-se o que seja ele, qual seja a essência dele, na medida em que essa essência determine as manifestações jurídicas respectivas - as repercussões que a existência do cadáver tem na ordem jurídica e os princípios cuja actuação ela desencadeie
E, suposto tudo quanto temos dito acerca da natureza do direito e dos elementos básicos com que se estrutura a ordem jurídica, quer no aspecto concreto, em que vive e se actua o direito, quer no objectivo e abstracto que contém as «formas», as idealidades susceptíveis de pôr em acto as situações concretas, fácil é ver-se que a questão formulada não pode resolver-se a partir da simples contemplação formal das funções ou situações em que o cadáver possa encontrar-se Buscar-se a solução por tal caminho seria cair-se, de novo, no dédalo do geometrismo, como quem ajusta peças de um painel de azulejos orientando-se apenas pelos contornos exteriores, sem atender às figuras que lhes dão sentido, e seria ainda cair-se no risco de se reduzir a questão da natureza à da qualificação, procurando-se integrar o cadáver noutras figuras conhecidas sem se admitir que ele possa ser algo de sui generis.
A solução do nosso problema tem girado, como se sabe, em torno desta alternativa pessoa ou coisa Podemos aceitá-la também, como ponto de partida, mas havemos de discutir a questão perante a estrutura e a hierarquia de elementos da ordem jurídica e tentar en-
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(...) Pedro Brou, Lexicon Latino-Português, voc. «in».
(...) Augusto Epifânio da Silva Dias, Sintaze Histórica Portuguesa, 4.ª ed., Lisboa, Livraria Clássica Editora, p. 128.