16 DE DEZEMBRO DE 1963 465
exige a fé que nessas cinzas se venere o corpo glorioso que o homem há-de possuir na vida eterna. Exige mais a natureza' exige para a realização dos fina doa homens vivos que eles prestem ao cadáver, por forma adequada, a homenagem por cies devida a pessoa a quem pertenceu e, mais ainda, a Deus que o criou e redimiu e um dia o há-de ressuscitar O cadáver acha-se submetido, por isso, não só aos fins da pessoa de quem foi corpo, mas também nos fins intrínsecos daqueles que ela precedeu na morte.
A crença na alma imortal e na subsistência de muitas das suas operações impõe, como se acentuou, a conclusão do que permanece a personalidade do morto Decerto essa personalidade nenhum reflexo directo e autónomo pode ter na ordem jurídica, na qual por isso lhe é negada toda a capacidade Mas a origem profunda do direito, que reside no dever de fidelidade ao fim último do homem, o, bem assim, a identificação básica da moral e do direito e a submissão a lei natural impõem a necessidade de a ordem jurídica assegurar, na medida do possível, o cumprimento dos fins a que deve considerar-se sujeito o cadáver e que, embora não próprios dele, mas da pessoa, suo fins intrínsecos como todos os que são ligados a essência da personalidade
Em caso algum, conseguintemente, o cadáver pode ser aplicado a fins extrínsecos e qualificado de «coisa».
A nossa conclusão está, pois, a vista: o cadáver não é nem pessoa, nem coisa, mas, em atenção ao que foi e ao que há-de vir a ser, por um lado, e, por outro, aos fins da personalidade, sempre subsistente, de que fez parte e aos das outras pessoas que com ela estiveram em relação, o cadáver está subordinado a fins intrínsecos, próprios das pessoas, e só pode ser tomado polo direito como acessório ou extensão das pessoas.
Que esta conclusão não cause surpresa ela é lógica consequência da perspectiva por que se encaram os realidades jurídicas quando se parte da concepção personalista do direito, acima esboçada.
Na concepção dominante, oriunda do decisionismo e do normativismo, a pessoa e a coisa são encaradas no mesmo plano formal, como simples elemento da relação jurídica Por isso todas as realidades entrelaçados por essa relação hão-de ser, forçosamente, ou pessoa ou coisa* se o esquema do todas as estruturas jurídicas é sempre o mesmo e se, para as realidades preexistentes, só há nele a posição de sujeito ou de objecto, é manifesto que essas realidades se hão-de integrar necessariamente numa dessas posições o só podem ser, portanto, ou pessoas ou coisas. E, como já advertimos, a circunstância de os autores não conseguirem libertar-se das intuições provenientes das convicções e atitudes usuais acerca do cadáver e de por isso caí em soluções híbridas (supra n.º 16) tem concorrido, realmente, para estabelecer, entre as pessoas e as coisas, uma zona de penumbra, muito propicia para esbater a diferença entre elas e assim agravar o formalismo da distinção das duas realidades.
Muito diversa é a nossa concepção, e logo também os corolários a que deve conduzir.
Se assentámos em que o direito e a moral se acham unidos na base - aquela exigência ontológica de realização do fim último cuja satisfação é assegurada pelo duplo princípio da autonomia e do devei de fidelidade a esse fim - e se concluímos que toda a ordem ética se acha subordinada a lei natural, que outra coisa não é senão a lei eterna adaptada à actividade livre do homem, forçoso nos é também entender que o direito deve respeitar, nos aspectos que lhe são acessíveis, os reflexos daquele fim último, mesmo paxá além da morte e do desaparecimento da capacidade jurídica Se defendemos que toda a ordem ética é teleclógica em razão de se estruturar em função dos fina das pessoas humanas que nela têm a primazia e se distinguem das coisas pelos seus fins intrínsecos, igualmente havemos de exigir que e direito respeite esses fins intrínsecos, onde e como quer que eles se manifestem. E se, paia nós, o direito vive essencialmente em concreto e se actua por meio de uma ordem de situações, enformadas pelas ideias e fins contidos na ordem das leis, e se entendemos, portanto, que ele vive em situações concretas, constituídas separada e singularmente, por igual modo temos de admitir que essas situações não podem reduzir-se a esquemas ou a figuras uniformes, antes têm de ser adaptáveis, com maleabilidade, aos fins especiais por que são enformadas E por tudo isto havemos de concluir que nada impõe logicamente que as realidades de que é formada a ordem das situações jurídicas tenham de se reduzir, necessariamente, a pessoas e a coisas.
Com este modo de ver - já o dissemos - não caímos num concretismo jurídico, que seria condenável, e tilo pouco, com o afirmarmos o carácter fundamentalmente concreto da ordem, jurídica, arrumamos a ciência do direito. Essa ordem, como se viu, é a actuação de uma ordem jurídica objectiva, preenchida pelas normas que são expressão dos fins superiores do homem, os quais se filiam todos no fim último e supremo, por isso as situações concretas correspondem a «formas» racionais, hierarquicamente subordinadas a um fim único e portanto emanadas daquelas «ideias» que deram o ser ao homem, e, vistas assim, têm, como em nenhuma outra concepção, conteúdo racional e lógico. A diferença não está em uma concepção do direito ter base racional que falte na outra, reside, sim, no tipo se conteúdo lógico que cada uma delas descobre na realidade jurídica conteúdo permanente artificial, formal e geométrico, numa, e conteúdo ontológico e teleológico, noutra - a nossa, precisamente.
E, contemplando a realidade neste «reino dos fins», força é reconhecer-se que o primado da pessoa há-de imperar em tudo quanto só enquadre nos seus fins intrínsecos, ainda que tenha de transcender as próprias pessoas, tal como o mundo das coisas não pode ser fechado a priori, sob pena de, para o direito, se limitar o senhorio do homem sobre a realidade exterior, precisamente aberta a novas descobertas e conquistas do homem.
Este último ponto é patente. Na noção técnica mais generalizada e equilibrada, «coisa» é a realidade que, não tendo personalidade jurídica, é susceptível de ser objecto de direitos, por isso não será coisa, ou será coisa fora. do comércio (como afirma o nosso código, partindo de uma noção mais lata), tudo aquilo que não for apto para sei objecto de direitos Assente tal ideia, e admitido que, por força dela, as coisas fora do comércio não podem ser objecto de apropriação (Código Civil, artigo 269 º e seguintes), seguir-se-ia logicamente que seriam irrelevantes para o direito, se não ilícitos, os actos de apropriação de alguma daquelas realidades que, em certo momento, não fossem susceptíveis de apropriação exclusiva, mesmo que viesse a descobrir-se o meio de as reduzir a propriedade privada E óbvio, porém, que o bom senso e o espírito da lei impõem a conclusão inversa sempre que uma realidade qualquer se torne aproveitável pelo homem, logo ela ingressa no mundo dos coisas, como já aconteceu ou parece estar para acontecer ao ar líquido, ao ar comprimido, a electricidade, aos raios cósmicos, à energia solar e até aos astros diversos da Terra e às riquezas que neles se encontrem. O elenco dos coisas não é, pois, fechado por natureza, antes se mostra elástico e em constante expansão