470 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
um fim intrínseco da personalidade e da comunidade, essencialmente integrado na missão que aos homens cumpre desempenhar na condição presente da existência humana.
Os fins terapêuticos para que se propõe admitir o emprego de órgãos e tecidos colhidos em cadáveres são, portanto, fins intrínsecos comuns a todos os homens e, consequentemente, aos próprios falecidos cujo corpo for para eles utilizado.
E, sendo assim intrínsecos, esses fins são adequados à natureza do cadáver e permitem criar-se, para os atingir, direitos ao aproveitamento do mesmo cadáver.
28. APRECIAÇÃO DOS FINS PROPOSTOS PERANTE OUTROS FINS INTRÍNSECOS DO FALECIDO - Assente que os fins previstos no projecto têm carácter intrínseco e são adequados à natureza do cadáver, vejamos se, no entanto, eles ofendem ou contrariam outros fins intrínsecos, em termos de haverem de ser conciliados com eles ou de se tornarem até reprováveis.
Este problema pode ser encarado em relação a fins do próprio falecido de cujo cadáver se trata e a fins de outras pessoas.
Consideremos em primeiro lugar os fins intrínsecos do próprio falecido.
Como sabemos, o cadáver está subordinado aos fins da personalidade, em cuja dignidade participa, mas não tem fins em si mesmo, de per si só, destina-se a corrupção e à destruição.
Por esse motivo só podem ser opostos aos fins a que se acha subordinado o cadáver os actos que atentem contra os fins da personalidade. Pensar-se o contrario seria atribuir-se fins intrínsecos ao cadáver em si mesmo considerado, contrapostos aos fins da pessoa e como se o próprio cadáver fosse dotado de personalidade, entendimento que, conforme se deixa dito, não é exacto.
E, colocado portanto o problema perante os fins da personalidade do falecido, parece indiscutível que a colheita de órgãos e tecidos para serem usados com fins terapêuticos - abrangidos nos fins da personalidade, como se demonstrou - não implica qualquer ofensa aos fins intrínsecos da pessoa cujo corpo sofre essa intervenção.
Pio XII, ao examinar o problema religioso e moral do enxerto da córnea de cadáveres e sem esquecer que para com estes pode haver obrigações morais, prescrições e proibições, declara expressamente que o defunto a quem se extrai a córnea não é atingido em nenhum dos bens a que tem direito, nem no seu direito a estes bens. A extirpação da córnea não é a extracção de um dos seus bens, porque a presença e a integridade dos órgãos visuais. já não têm no cadáver o carácter de bens, pois esses órgãos já lhe não são úteis e já não têm nenhum fim (115).
Esta é, na verdade, a conclusão que se impõe era geral a utilização de órgãos e tecidos de cadáveres não ofende nenhum dos fins a cujo cumprimento o defunto tenha direito.
Convém, no entanto, e para afastar todas as dúvidas possíveis, fazer referência a alguns pontos em particular.
Antes de mais, importa salientar-se que a utilização terapêutica de tecidos e órgãos do cadáver não contraria a dignidade deste, desde que se destine ao tratamento de outros homens, e a satisfazer uma necessidade real, e não meros objectivos fúteis ou indecorosos.
Com estes limites, o enxerto de órgãos e tecidos não difere, do ponto de vista moral, da transfusão de sangue de uma pessoa viva para outra (o sangue é, aliás, um dos tecidos susceptíveis de se colherem em cadáveres para fins terapêuticos), e é óbvio que nada há na transfusão de sangue que seja contrário à dignidade pessoal, mesmo quando o dador se encontre vivo, uma vez que esse sangue seja utilizado para tratar um doente ou para lhe salvar a vida. Os enxertos de outros tecidos, quando extraídos de cadáveres aos quais já não são úteis, não podem ser olhados por forma diversa são meios de melhorar ou salvar a saúde de outros homens, aplicação perfeitamente conforme à dignidade das pessoas e até aos deveres que as vinculam a todas.
Outro ponto que convém ponderar-se em particular refere-se à ressurreição dos mortos.
Como se disse, é dogma cristão o de que, nos fins dos tempos, todos os mortos serão chamados de novo à vida para, em condição mais elevada do que a actual, fruírem a bem-aventurança eterna ou sofrerem o castigo das suas faltas, em corpo e alma. E é de fé, igualmente, que esse corpo é o mesmo que o terreno por grande que seja a diferença entre o corpo terreno e o corpo transformado dos ressuscitados, este será específica e numericamente o mesmo que aquele (116).
Desta verdade de fé poderão alguns inferir, embora sem razão, que a extracção de tecidos ou órgãos de cadáveres e o emprego deles em enxertos no corpo de vivos contrariem a ressurreição e sejam por isso condenáveis.
Para pessoas pouco versadas sobre este dogma, a simples destruição anormal do cadáver poderia obstar à restauração final do corpo ou valer como prova de que ela não se verificará. Já no tempo das perseguições, vendo o cuidado que os cristãos tinham em recolher os corpos dos mártires para lhes dar sepultura honorífica, os tiranos queimavam-nos, de propósito, espalhando as cinzas ou deitando-as ao rio, porém, os fiéis, apoiados na crença dos seus mistérios, respondiam que apesar de tudo Deus conservaria os elementos para o triunfo da ressurreição (117). E, como é notório, é com o intuito de fazer crer que a ressurreição é impossível que a maçonaria tem feito (especialmente no século transacto) grande propaganda da incineração dos cadáveres, por esse motivo, e não obstante a incineração não ser intrinsecamente reprovável (salvo no que apresenta de violência escusada e de falta de apego ao cadáver por parte dos vivos), a Igreja proíbe-a e pune-a com penas eclesiásticas (Codex Júris Canonici, cân 1203, 1240 e 2339), precisamente para reprimir o significado ímpio que se lhe pretende atribuir.
Na mesma ordem de ideias, e para além da mera destruição anormal do cadáver, poderá supor-se que todos os actos e práticas dos quais resulte a confusão material de parte do cadáver com o corpo de outras pessoas envolve obstáculo a ressurreição. Já na Idade Média se argumentava contra esta com a circunstância de alguns selvagens usarem alimentar-se de carne humana. E, perante a prática dos enxertos, não falta quem pergunte em qual dos corpos deve ressuscitar a
porção enxertada e se é possível a ressurreição daqueles em que ela faltar.
Mas todas estas dúvidas e objecções são radicalmente desprovidas de fundamento.
Baseiam-se elas na ideia de que o corpo futuro há-de resultar da simples reanimação dos cadáveres, por tal modo que, necessariamente, haveria de ser formado de toda a matéria que tivesse composto o corpo terreno. Esta ideia é contudo, duplamente errónea e ingénua.
(115) Discurso de 13 de Maio de 1956, lugar citado, p. 23.
(116) Schmaus, ob cit, vol. VII, Los Novisimos, edição Rialp, Madrid, 1061, p. 281.
(117) J. A. Martins Gigante, Instituições de Direito Canónico, vol. II, 3.ª edição, Braga, 1954, p. 71, e autor aí citado.