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16 DE DEZEMBRO DE 1963 475

comuns, e devendo em principio confiar-se a satisfação das primeiras à oferta espontânea, nunca poderia garantir-se aquele benefício como direito individual, e este ponto de vista é válido mesmo nas hipóteses excepcionais de obrigatoriedade, pois nestas haveria que coordenar-se, sempre, o aproveitamento com outros fins intrínsecos do falecido e de outras pessoas, coordenação que suscitaria problemas de acuidade muito particular nesses casos de obrigatoriedade.
A situação dos eventuais beneficiários deve enquadrar-se, portanto, na figura dos interesses legítimos em conjunto, os possíveis beneficiários devem ter as garantias legais e técnicas suficientes para satisfazer as respectivas necessidades de tratamento ou de investigação, mas cada um não terá o direito de reclamar um cadáver ou uma parte dele, como coisa devida, antes deve ficar subordinado à coordenação geral das necessidades e possibilidades da comunidade em tal matéria.
Em resumo, o aproveitamento dos cadáveres implica uma exigência por parte da comunidade que se traduz para esta num direito e num dever o de reclamar dos seus membros os meios necessários para satisfazer essa exigência e de os coordenar pela forma mais equitativa e eficaz.
Relativamente aos membros da comunidade essa exigência traduz-se, por uma parte, num dever comum não especialmente encabeçado em ninguém, donde provém, para cada indivíduo, o direito de dispor do seu corpo ou de o recusar à utilização reclamada pelo bem comum, excepcionalmente, poderá impor-se, a título de mobilização, o dever de suportar o aproveitamento do respectivo cadáver. Foi outra parte, aos eventuais beneficiários da utilização não deve reconhecer-se um direito concreto, mas sim um interesse legítimo que igualmente deve ser assegurado pela forma mais eficaz e equitativa.
Ao lado destas várias situações poderão surgir outras, dependentes de fins intrínsecos diversos dos propostos o que devem ser coordenados com eles.
Já examinámos esses fins nos n.ºs 29 e 30, e é pela doutrina aí exposta que nos havemos de orientar para determinar as possíveis situações emergentes de tais finalidades.
Assim, vimos que por parte do falecido e até do beneficiário podem verificar-se exigências de dignidade e decoro pessoal que corresponderão, por parte daquele, a limites impostos a disposição do cadáver, e, por parte deste, a limitações do aproveitamento.
Relativamente à comunidade, devem recordar-se, antes de mais, as exigências de segurança das pessoas e do respeito do cadáver. Delas resultarão, acima de tudo, deveres dos Poderes Públicos no que se refere à regulamentação e fiscalização dos aproveitamentos e, muito em especial, à verificação segura da morte.
No tocante à comunidade familiar, vimos que ela é titular de um direito próprio a satisfazer as exigências da piedade familiar.
Deste direito decorre, em primeiro lugar, o direito à existência e ao cumprimento de normas que, quanto possível, respeitem essa piedade e a conciliem com os fins da utilização do cadáver.
Outro corolário do direito à satisfação da piedade familiar deve ser o de a família se opor ao aproveitamento do cadáver. A este respeito ensina Pio XII «A extracção da córnea, mesmo perfeitamente licita em si, pode também tornar-se ilícita e violar os direitos e sentimentos daqueles a quem cabe cuidar do cadáver, os parentes mais próximos em primeiro lugar, mas pode-se tratar também de outras pessoas em virtude de direitos públicos ou privados. Não seria humano, para servir os interesses da medicina ou «fins terapêuticos», ignorar sentimentos tão profundos. Em geral, não deveria ser permitido aos médicos
empreender extirpações ou outras intervenções sobre um cadáver sem o assentimento daqueles que estão encarregados dele e talvez mesmo sem respeito por objecções formuladas anteriormente pelo interessado» (125).
Nesta ordem de ideias, entendemos que deve reconhecer-se a faculdade de recusar o aproveitamento pelo menos à família do defunto.
Vimos que a família não tem fundamento para, por si, oferecer o cadáver para aproveitamento, em razão de este se fundar num dever não individualizado, cujo cumprimento deve em princípio ser espontâneo e só pode ser reclamado pela comunidade, em nome do bem comum, mas a família é titular de um direito próprio, que tem por objecto a satisfação da piedade devida aos defuntos, e esse direito constitui título suficiente para ela se poder opor à utilização.
Problema mais delicado e duvidoso é o de se saber se esse direito da família poderá prevalecer contra a vontade do falecido. Em princípio, tratando-se de um direito próprio da comunidade familiar, poderia admitir-se a necessidade de também esta consentir na utilização do cadáver, pelo menos tacitamente - o artigo 244 º do Código do Registo Civil, por exemplo, estabelece um regime para a incineração de cadáveres que, praticamente, implica a necessidade de disposição do falecido e do consentimento da família. Atendendo-se, porém, a que a oferta do corpo próprio para fins terapêuticos ou de investigação constitui um acto louvável e se traduz não só no exercício de um direito, mas até no cumprimento de um dever, posto se trate de simples dever comum não individualizado, parece que, em princípio, a família se deve submeter à vontade do falecido. É preferível, pois, dar-se precedência ao direito de disposição do defunto sobre o direito da família, o que, aliás, é conforme à natureza destas situações jurídicas, como resulta, nomeadamente, da circunstância de, a respeito dos direitos inerentes a piedade familiar, também se fazer prevalecer o direito do cônjuge sobre o dos parentes, e, entre estes, o dos mais próximos sobre os mais remotos.
Finalmente, deve reconhecer-se a família legitimidade para velar pelo cumprimento das disposições legais relativas ao aproveitamento, e, em particular, à verificação da morte e as condições externas da colheita de tecidos e órgãos. Tanto a solidariedade familiar, como o direito próprio da família à satisfação da piedade devida ao defunto, são título bastante para aquela velar pelo cumprimento dessas disposições, em obediência a mesma orientação que, por exemplo, as leis adoptam a respeito da legitimidade para a constituição de assistentes em processo penal, aliás, a infracção às disposições reguladoras da colheita poderá revestir natureza criminal, o que acentua o paralelismo entre as duas matérias.

32. CONFORMIDADE GENÉRICA DO PROJECTO COM OS PRINCÍPIOS DEFENDIDOS - Expostos os fundamentos em que deve assentar a doutrina jurídica do cadáver e fixados os princípios que, em especial, devem observar-se acerca do aproveitamento do corpo de pessoas falecidas para fins terapêuticos ou científicos, está esta Câmara habilitada a formular um juízo genérico acerca do projecto de decreto-lei em exame, e é com aprazimento que pode reconhecer que esse diploma, em conjunto, se encontra em perfeita conformidade com a orientação atrás defendida.
O projecto começa por, no artigo 1.º, admitir a colheita de tecidos e órgãos cadavéricos para serem aplicados a fins que já mostrámos serem lícitos os fins terapêuticos e os (...)

(125) Discurso e lugar citado, p. 25.