16 DE DEZEMBRO DE 1963 479
(...)lizados, e, nomeadamente, o n.º 5.º aludia expressamente às «colheitas a que se referem os artigos anteriores», os quais - se não directamente, pelo menos em razão de se enquadrarem naquele conjunto de preceitos - só providenciavam sobre aquela hipótese particular, pelo contrário, os n.ºs 8.º a 10.º tinham em vista os óbitos, ocorridos fora daqueles estabelecimentos, de pessoas que houvessem autorizado expressamente a recolha, e adaptavam até o regime dos artigos antecedentes às especialidades deste caso, visto conferirem a fiscalização respectiva aos delegados e subdelegados de saúde da área onde se efectuassem as intervenções. Logo na redacção subsequente das referidas «bases» se abriram, porém, algumas brechas no esquematismo do sistema o artigo 5.º, em vez de se limitar às colheitas referidas nos artigos anteriores, passou a falar genericamente nas colheitas «previstas neste diploma», e os n.ºs 8.º a 10.º foram transformados no artigo 7.º (correspondente ao actual), o qual - embora reportando-se, sempre, à morte fora de estabelecimentos especializados e à existência de consentimento expresso do falecido - já exigia a verificação do óbito, nos termos do diploma em estudo. Não há dúvida, pois, de que - não obstante algumas hesitações - as «bases» em causa circunscreviam, claramente, o âmbito dos artigos 6.º e 7.º
Não é isto, todavia, o que se passa com o projecto referindo-se o artigo 5.º a «colheitas», sem qualquer restrição, e providenciando o artigo 7.º não só sobre o caso de haver consentimento nos termos do § 1.º do artigo 2.º mas também de se verificarem as condições dos artigos 3.º e 4.º (a que é aplicável o artigo 5.º e compreende a hipótese de faltar o consentimento do defunto) e exigindo, por outra parte, a verificação do óbito efectuada nos termos do artigo 6.º, é óbvio que literalmente o âmbito dos artigos 5.º e 7.º é hoje precisamente o mesmo, e que esses preceitos se encontram, por conseguinte, em absoluta contradição.
Olhando-se ao fundo da questão, parece não poder pôr-se em dúvida que o regime preferível é o do artigo 5.º - o de as colheitas serem efectuadas em estabelecimentos apropriados. Dos pareceres das diversas entidades ouvidas pelo Ministério da Saúde e Assistência e, muito particularmente, dos elementos que nos foram fornecidos pelo Instituto de Medicina Legal de Lisboa, deduz-se que, do ponto de vista técnico, é essa a solução considerada ideal por todos, e, no tocante a maioria das especialidades (pele, ossos, etc.), considera-se até impraticável a colheita fora desses locais e, designadamente, a efectuada em domicílios particulares - a única que parece possível é a de globos oculares. Por outro lado, é óbvio que seria incompreensível sujeitarem-se ao regime rigorista dos artigos 5.º e 6.º as colheitas efectuadas em clínicas ou institutos universitários ou noutros estabelecimentos previstos no artigo 3.º, e deixar-se liberdade praticamente ilimitada para as colheitas em cadáveres de pessoas falecidas noutros locais, essa liberdade envolveria, inclusivamente, o risco da completa frustração de muitos princípios consignados no projecto, nomeadamente o da verificação do óbito em condições de segurança (artigo 6.º) e o da gratuitidade da cessão do cadáver para servir de objecto à colheita (artigo 11.º).
A estas considerações acresce a de que as colheitas devem ser efectuadas por médicos habilitados com a especialidade competente e que as condições em que são feitas e em que venham a ser conservados os tecidos ou órgãos recolhidos põem gravemente em causa a utilidade dos enxertos em que venham a ser usados.
Por outro lado, a intenção, possivelmente inspiradora do artigo 7.º, de não criar dificuldades à recolha de órgãos ou tecidos em cadáveres de pessoas falecidas fora de estabelecimentos hospitalares ou semelhantes, quando elas próprias a tenham autorizado, embora digna de louvor em si mesma, afigura-se condenada a, na maioria dos casos, não ser realizável na prática.
Opõe-se-lhe, antes de mais, a dificuldade de se verificar a morte recente por processos seguros, fora de estabelecimentos apropriados na sua maior parte, os métodos que vemos apontados (electroencefalograma, electrocardiograma, radiografia depois de se ter injectado num vaso uma substância opaca ao raio X) não se apresentam como utilizáveis por qualquer médico e em qualquer local, e aquele que melhor se adapta a essas condições - a verificação de falta de circulação sanguínea por meio de arteriotomia - é precisamente o que mais receios e desconfiança inspira aos leigos, e menos aceito seria, por isso, num domicílio particular.
Além disso, a duração dos tecidos e órgãos é muito limitada, e por isso a utilização deles tem de fazer-se num lapso de tempo muito curto, excepto em alguns casos, se se recorrer a meios especiais de preparação e conservação, que supomos não estarem ao alcance de todos os médicos (127). Sendo assim, é óbvio que as peças recolhidas por vontade de pessoas falecidas fora de estabelecimentos hospitalares ou semelhantes, normalmente só serão utilizáveis para conservação em bancos especializados. Na verdade, ou a operação de enxerto é urgente, e não poderá aguardar a morte de alguém que haja disposto do próprio corpo para fins terapêuticos, ou não é urgente, e terá então de ser preparada com as precauções usuais - técnicas (exames, análises, etc.) ou de outra natureza -, o que pressupõe a possibilidade de se fixar antecipadamente, pelo menos com alguma aproximação, a época em que há-de realizar-se, em qualquer caso, o médico ou recorre a bancos onde os enxertos estejam permanentemente à disposição dos especialistas, ou tem de usar peças recentes, e em tal caso precisará de as procurar em locais onde habitualmente haja cadáveres em condições de utilização, fora destas regras só ficarão as hipóteses, que não se presumem frequentes, de falecer um dador de tecidos ou órgãos precisamente na época em que eles são necessários, ou de uma pessoa, cuja morte se prevê para época próxima e suficientemente localizada no tempo, anunciar ao especialista, com a antecedência conveniente, a vontade de o seu corpo ser aproveitado para fins terapêuticos; não parece, todavia, que tais hipóteses tenham verdadeiro interesse prático.
Todos estes motivos impõem, no entender desta Câmara, a supressão ou a cuidadosa delimitação do preceito contido no artigo 7.º O regime fundamental deve ser, nas linhas gerais, o do artigo 5.º, e apenas convém esclarecer melhor as condições em que devem ser permitidas as colheitas quando o óbito se verifica fora de estabelecimentos especializados.
Além disso, e para se evitarem dúvidas e repetições, convém igualmente alterar-se a seriação actual dos preceitos relativos às condições requeridas para as colheitas.
(127) Segundo a informação amavelmente prestada pelo Instituto de Medicina Legal de Lisboa e baseada em consultas particulares a especialistas dos vários ramos, a possibilidade de utilização das peças recolhidas varia de caso para caso assim, os ossos podem ser utilizados até um ano, conservados à temperatura de -30.º; os olhos, até 12 horas (à temperatura de - 10.º), e, corrido este lapso de tempo, são utilizáveis até um ano, desde que sujeitos a liofilização, mas os olhos assim tratados só são aplicáveis em determinados casos; as cartilagens, desde que conservadas num meio químico especial, são indefinidamente utilizáveis; a pele é utilizável durante 12 horas e, tratada por liofilização, durante um ano.