16 DE DEZEMBRO DE 1963 483
efectuar-se dentro das dezoito horas (artigo 6.º), além de representar uma logomaquia, permitiria afirmar-se, a contrario, que as colheitas que não tivessem de efectuar-se nas dezoito horas, poderiam efectuar-se fora desse prazo, deixando-se a matéria do projecto sem fronteiras definidas e tornando-se inúteis aquelas disposições.
Para se sair destas dificuldades apresentam-se dois caminhos possíveis ou aludir-se apenas, como tantas vezes temos feito no decurso deste parecer, a colheitas no corpo de pessoas recém-falecidas, ou dizer-se francamente aquilo que estabelece o contraste entre as colheitas previstas no projecto e as outras possíveis. A primeira solução poderia parecer a preferível por mais discreta, aspecto que pode não ter sido estranho à redacção do projecto, mas a segunda é mais rigorosa e parece-nos claramente a mais aconselhável. Nesta ordem de ideias, o texto sugerido declara no artigo 1.º que o diploma projectado institui o regime pelo qual são admitidas («são permitidas nos termos do presente decreto-lei ») as colheitas de tecidos ou órgãos quando estes forem necessários para fins terapêuticos ou científicos, e aquelas intervenções, para serem úteis, não possam aguardar o decurso do prazo legal de prevenção contra a morte aparente.
Assim fica, simultaneamente, delimitado o objecto do projecto e afirmada genericamente a licitude destas colheitas.
Nos artigos 2.º e 3.º, que apenas encontram correspondência parcial em alguns preceitos do projecto, nomeadamente no § 2.º do artigo 5.º e no artigo 14.º, definem-se, como se disse, o destino imediato dos órgãos ou tecidos recolhidos e a competência para as colheitas.
No n.º 37 já se pôs em evidência a necessidade de se esclarecerem estes pontos e aí se deixaram formulados alguns princípios aconselháveis em tal matéria, e a redacção dos dois artigos parece suficientemente explícita para dispensar justificação mais pormenorizada.
Na elaboração desses preceitos houve a preocupação de se satisfazer a várias solicitações aparentemente contraditórias, mas cuja conciliação é indispensável montar-se uma estrutura bem definida, mas maleável, e assegurar-se o carácter público do sistema, sem se cair na centralização e no estatismo. A doutrina daquelas disposições, vista à luz desses objectivos, parece facilmente compreensível os órgãos recolhidos, destinados a medicina oficial ou particular, podem ter aplicação imediata ou ser conservados em bancos, e a instituição destes - conquanto eles possam ser particulares, embora sempre sem carácter de monopólio - é confiada ao critério do Governo. As colheitas são sempre da competência desses bancos ou de outras entidades, públicas ou privadas, também delimitadas por providências governamentais; e cada uma dessas entidades constitui um «centro de colheita», ao qual (quando não seja particular) podem ser anexados, para efeitos deste diploma, outros estabelecimentos oficiais. Mas essa competência exclusiva não significa colectivização, mas apenas coordenação e orientação de uma entidade responsável poderão executar as colheitas tanto os médicos pertencentes aos serviços em causa como os simples particulares, desde que neles inscritos, mas haverá uma entidade que coordene esses serviços com os outros interessados (estabelecimentos onde se verifique o óbito de pessoas sujeitas a colheita e estabelecimentos que necessitem dos órgãos e tecidos recolhidos) e que faça observar a devida ordem nas colheitas, doseando-as segundo as necessidades, a precedência dos fins a que são destinadas as peças recolhidas e a urgência da utilização destas, e evitando a «corrida» aos cadáveres ou a primazia conquistada por meios menos regulares e lícitos.
Por esta forma, em vez de uma organização unitária e centralizada, poderá haver vários centros de colheitas, autónomos mas não exclusivistas. Todos os especialistas poderão ter acesso a eles, tanto para efectuar as colheitas, como para aproveitar as peças recolhidas, mas em cada centro haverá uma entidade responsável e superintendente, competente para orientar o serviço das colheitas dentro das finalidades legais e de acordo com aquilo que é princípio de todo o sistema - o serviço do bem comum. E tudo isto será montado com maior ou menor latitude, com maior ou menor intervenção dos organismos oficiais, com maior ou menor âmbito de cada centro, conforme o critério do Governo e tendo-se em atenção o parecer das direcções-gerais competentes.
Julga esta Câmara que por esta forma será possível erguer-se um sistema que ao mesmo tempo se mostre maleável e bem articulado e definido e seja dotado de suficientes garantias de coordenação e fiscalização.
40. CONDIÇÕES SUBJECTIVAS DA COLHEITA - As condições ou requisitos subjectivos da colheita acham-se regulados, na redacção proposta, nos artigos 4.º a 8.º os artigos 4.º a 6.º versam sobre a autorização ou proibição das recolhas por parte do falecido e da execução da vontade manifestada por este a esse respeito, enquanto o artigo 7.º regula as colheitas efectuadas independentemente daquela autorização, mas sem oposição da família, e o artigo 8.º consagra, em geral, o princípio da gratuitidade dessa autorização ou da abstenção de oposição familiar. Correspondem, assim, aos preceitos dos artigos 2.º a 4.º e 11.º do projecto governamental.
O diploma em estudo começa por permitir que qualquer pessoa proíba a colheita de tecidos ou órgãos no seu corpo, caso em que essa intervenção não será admitida, «salvo se a lei expressamente determinar o contrário» (artigo 2.º, primeira parte). Posto de lado este caso de o falecido ter proibido a colheita, o projecto distingue, no tocante à exigência de consentimento privado, três hipóteses: a de o defunto ter autorizado a colheita (artigo 2.º, segunda parte), a de ele o não ter feito, mas ter morrido em certos estabelecimentos, caso em que as colheitas poderão efectuar-se desde que não haja oposição da família (artigo 3.º) e, finalmente, a hipótese de não ter havido consentimento do falecido nem o óbito ter ocorrido naqueles estabelecimentos, sendo então a colheita permitida apenas quando haja consentimento do cônjuge sobrevivo ou, na falta dele e sucessivamente, de qualquer ascendente ou descendente no 1.º grau, ou de qualquer ascendente ou descendente no 2.º grau (artigo 4.º).
Na redacção proposta por esta Câmara afasta-se a última destas hipóteses, por motivos já expostos acima (n.ºs 31 e 37). Agora importa apenas analisar-se as duas restantes hipóteses, únicas previstas no texto sugerido por este parecer.
No artigo 4.º desse texto regula-se a manifestação de vontade do falecido, adoptando-se uma redacção que parece mais completa do que a do projecto (neste nada se diz, por exemplo, acerca da forma externa da proibição) e mais ajustada à linguagem tradicional das leis aí se diz, em substância, que qualquer pessoa pode proibir ou autorizar as colheitas desde que o faça por determinadas formas. E é neste último aspecto que precisamente mais necessário se afigurou rever a orientação do projecto, pois nele se consagram formas que mereceram importantes reparos por parte do Ministério da Justiça e, na verdade, não parecem satisfazer as exigências da segurança das pessoas e até ao prestígio e dignidade dos serviços.
Admite o projecto que o consentimento da pessoa de cujo corpo se trata seja prestado verbalmente ou por (...)