16 DE DEZEMBRO DE 1963 487
evitarem-se abusos semelhantes em relação ao aproveitamento de cadáveres, quanto se trata de uma matéria ainda não experimentada entre nós em termos legais e apta, como nenhuma outra, para gerar susceptibilidades e escândalos.
figurou-se justo, contudo, alargarem-se um pouco mais as excepções admitidas pelo artigo 11.º do projecto. Nele se permite, depois de se proibirem todas as transacções lucrativas sobre cadáveres, que o dador condicione o aproveitamento do seu corpo ou de parte dele «à atribuição de determinado donativo em favor de obras de assistência». Ora, se se aceita, e bem, este princípio, não se pode deixar de reconhecer como moral o acto pelo qual, com espírito semelhante, o falecido tenha condicionado a utilização do seu cadáver a certo benefício para a própria família. Decerto não haverá obra de assistência que mais natural e desejável possa parecer a uma pessoa do que beneficiar aqueles que lhe são queridos e mais próximos lhe são, e por esse motivo pareceu justo permitirem-se as disposições com esse objectivo. Por outro lado, o que pode ser chocante e escandaloso é o acto dê se dispor de um cadáver alheio em troca de vantagens materiais, ou o de conseguir um benefício actual para autorizar o aproveitamento futuro do próprio corpo, isto é, «vender-se» um consentimento que deveria ser dado por caridade ou justiça; nada disto se passa, porém, nas disposições mortis causa: aqueles que dispõem do seu corpo sem nenhuma vantagem actual procedem, em princípio, com simples fim humanitário, e este não é desmentido se, àquela disposição, essas pessoas acrescentarem outras, destinadas a serem cumpridas depois da morte, pelas quais consigam assegurar um benefício futuro a pessoas que lhes sejam queridas.
Pareceu, também, vantajoso substituir-se a expressão «obras de assistência» por «fins de assistência», visto aquele vocábulo obras ter em matéria assistência!, pelo menos na linguagem corrente, o sentido restrito de «instituições» ou até de «instituições particulares», sentido que não seria adequado. E aditaram-se aos fins de assistência os fins pios, tomados no sentido de finalidade de carácter religioso; o qualificativo «pio» poderia, até, ser o único empregado, pois a noção legal de legado pio abrange hoje tanto os fins religiosos como os assistenciais (cf. o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 39 449, de 24 de Novembro de 1953, com a redacção dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 43 209, de 10 de Outubro de 1960), mas, porque não se trata de verdadeiros legados e por ser útil afastar-se toda a possibilidade de dúvida, preferiu-se dizer «fins pios ou de assistência».
Para terminar, resta-nos responder a uma objecção possível: a de a redacção proposta não abranger alguns actos reprováveis que poderiam cair sob a alçada do artigo 11.º do projecto, como seriam os de pagar ou receber quaisquer quantias, acima das autorizadas, para adquirir órgãos ou tecidos lìcitamente recolhidos, ou para conseguir de pessoas encarregadas de velar por cadáveres (funcionários- de hospitais ou de agências funerárias, por exemplo) a complacência necessária para se efectuarem colheitas não permitidas por lei. A objecção seria ilusória, pois, na maioria dos casos pelo menos, esses actos não caberiam também no artigo 11.º do projecto, visto que, em geral, não representariam «transacções» sobre cadáveres ou parte deles, por serem praticados por pessoas desprovidas de poderes sobre os cadáveres, e terem por fim, não tanto o pagamento de um preço, por estes, como a retribuição ilícita de infracções a deveres funcionais. São actos imorais, sim, mas muito mais próximos do suborno ou corrupção, e por isso a proibição directa deles não tem lugar próprio no regime estabelecido pelo diploma projectado; por esse motivo, e para os não deixar a descoberto, mas também não se introduzirem nesse regime matérias estranhas, pareceu mais correcto atingi-los apenas por via penal, e para esse fim se inseriu no artigo 19.º do texto proposto a disposição da alínea d) do n.º 3.º
41. CONDIÇÕES OBJECTIVAS DA COLHEITA. - Os artigos 9.º a 12.º, que; no texto sugerido por esta Câmara, correspondem à presente rubrica, contêm, sem desvios apreciáveis, a doutrina dos artigos 5.º a 7.º do projecto, adaptada aos princípios fundamentais dos artigos 2.º e 3.º do novo texto.
Neles se fixam, em primeiro lugar, as regras respeitantes ao local da colheita. Poderia parecer mais lógico começar-se por estabelecer a necessidade de verificação do óbito, por ser essa a primeira e a mais importante das condições objectivas da recolha; mas, como facilmente poderá concluir-se da leitura dos preceitos em causa, a ordem sugerida é a preferível em virtude do enquadramento que os princípios reguladores do local da colheita oferecem para o regime das restantes condições objectivas.
A regra consagrada, relativamente ao local da intervenção, é a constante do artigo 5.º do projecto e já se encontra justificada no n.º 36 deste parecer. Todavia, para não se deixar de atender, na medida do possível, aos motivos inspiradores do artigo 7.º do projecto (literalmente oposto àquele, como se disse), e ainda para prevenir futuras facilidades conquistadas pelo eventual aperfeiçoamento da técnica, permite-se excepcionalmente, no § único do artigo 9.º do texto proposto, que a entidade superintendente na colheita (o director do respectivo centro), em harmonia com instruções emanadas do Ministério da Saúde e Assistência, autorize, a título genérico ou em casos particulares, que essa intervenção seja executada em outro local, quando atendendo aos meios disponíveis e à natureza da operação, se certifique de que esta pode ser efectuada em condições convenientes.
Os artigos 10.º a 12.º do texto desta Câmara contêm matéria correspondente u do artigo 6.º do projecto. Mas, em vez de se condensar num só artigo a fixação do prazo facultado para a colheita, e a verificação do óbito e aspectos complementares, e de acerca destes últimos pontos, se começar por exigir a apresentação de um certificado de óbito a certa entidade, para depois se regular a própria verificação da morte, deixando-se implícita a exigência dessa formalidade essencial, seguiu-se uma ordem inversa e mais lógica: estabeleceu-se no artigo 10.º a necessidade e os termos da verificação do óbito, e regula-se o atestado que os verificadores devem passar, e, em seguida, prescrevem-se no artigo 11.º as formalidades que, com base nesses e noutros documentos, devem ser satisfeitas pelo médico quê vai efectuar a colheita, e, finalmente, no artigo 12.º prevê-se o prazo durante o qual a colheita é legítima, matéria que, por distinta das anteriores, deve ser autonomizada em preceito próprio.
Fundamentalmente, a orientação destas disposições é igual à do projecto, mas - como se disse já - procurou-se adaptá-la aos princípios fixados nos artigos 2.º e 3.º do texto proposto por esta Câmara. Nomeadamente, tentou-se construir um sistema coerente em que se mantivesse, em todas as hipóteses, a possibilidade de fiscalização eficaz e ao mesmo tempo se evitasse a incongruência de se prescrever um regime apertado e rígido para as colheitas efectuadas em estabelecimentos especializados, permitindo-se que, fora deles, essas intervenções se regessem por princípios vagos e portanto muito mais latos (cf. o n.º 36 deste parecer).
Julga-se que o sistema sugerido, sem agravar sensìvelmente o formalismo que deve rodear as colheitas, tem o