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486 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51

colheita. A verdade é, no entanto, que seria muito mais chocante a requisição de cadáveres de pessoas falecidas fora dos estabelecimentos referidos, e que, por esse motivo, aquele aspecto reprovável que o aproveitamento de cadáveres pode apresentar na prática só poderá remover-se difundindo-se o costume de os próprios indivíduos oferecerem espontaneamente o seu corpo para os fins terapêuticos ou científicos.
Declarados os motivos por que se aceitou a doutrina dos preceitos que estamos comentando, resta chamar-se a atenção para um ponto especial em que o texto sugerido se afasta do projecto o da legitimidade para se deduzir a oposição familiar.
O artigo 3.º do projecto permite a oposição a «qualquer das pessoas indicadas no § 2.º do artigo anterior», ou sejam o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens e, sucessivamente, os ascendentes ou descendentes no 1.º grau e os ascendentes ou descendentes no 2.º grau. Poderia pôr-se o problema de a faculdade de oposição ser extensiva a outros parentes (irmãos, sobrinhos, etc.) e até a outras pessoas, tais como os tutores de incapazes, mas, considerando-se a necessidade de se facilitarem as colheitas, e atendendo-se a que elas, de per si, são legítimas e que aqui se trata apenas de as conciliar com as exigências da piedade familiar parece-nos aceitável a orientação seguida pelo projecto neste ponto. O que já não se afigura correcto é a limitação daquela faculdade ao 1.º e 2.º graus da linha recta não é usual, nas leis, imporem-se limites à relevância do parentesco na linha directa, o que bem é compreensível em razão da intimidade derivada desse vínculo, e nem sequer pode temer-se que a abolição desse limite prejudique na prática as colheitas, porquanto devem ser muito raros os casos em que o falecido tenha ascendentes ou descendentes para além do 2.º grau (isto é, tenha bisavós ou trisavôs, ou bisnetos ou trinetos) em condições de deduzirem oposição. Por esse motivo se propôs que sejam admitidos a opor-se quaisquer ascendentes ou descendentes, sem limite de grau.
E também não se faz entre eles qualquer discriminação O artigo 3.º do projecto refere-se a qualquer das pessoas indicadas no § 2.º do artigo 2.º, forma de dizer que pode inculcar ser admissível a oposição de cada uma dessas pessoas, sem se estabelecer entre elas qualquer precedência, mas, como o citado artigo 3.º remete para o § 2.º do artigo 2.º, e neste se confere o direito, aí previsto, de impugnar o consentimento verbal do falecido, em primeiro lugar ao cônjuge, e, na falta dela, e sucessivamente, aos seus ascendentes ou descendentes no 1.º grau e aos ascendentes ou descendentes no 2.º grau, pode perguntar-se se a respeito da oposição regulada no artigo 3.º também é de observar esta ordem de preferências. Pareceu melhor à Câmara não adoptar esta última solução, e antes permitir a oposição a qualquer dos familiares indicados, porque a prova da existência ou inexistência de outros familiares com melhor direito seria bastante complicada é fácil a alguém provar que é avô ou neto de outrem, mas já é muito difícil produzir, com a urgência e simplicidade requeridas pelo caso, a prova de que o falecido não tem vivos o pai ou a mãe, ou um filho, por exemplo, a isto acresce que as preferências entre parentes são compreensíveis quando há conflito entre eles, e não - como acontecem aqui - quando somente se põe o problema de existir ou não um familiar mais próximo que se haja abstido de agir.
Finalmente, e seguindo-se esta última ordem de ideias, estabelece-se no texto proposto que, embora o direito de oposição pertença a qualquer dos familiares indicados, o consentimento expresso do cônjuge inibe os parentes de se oporem, tal como o de um parente mais próximo impede a oposição por parte de outro mais remoto. Nesta hipótese há conflito positivo entre a atitude de duas pessoas, conflito que é mister resolver-se por uma ordem de precedência, e a prova dos vínculos familiares já não oferece dificuldade, porque, feita ela por cada um dos interessados a respeito da relação que o vinculava ao falecido, logo resulta, por simples confronto das duas posições, qual é aquela a que a lei atribui primazia.
O grupo de preceitos relativos às condições subjectivas da colheita termina, no texto proposto, com o artigo 8.º, correspondente ao artigo 11.º do projecto.
Nesta última disposição, estabelece o projecto que «o cadáver humano, ou qualquer das partes do mesmo, não pode ser objecto de transacção de carácter lucrativo», e, por esta redacção, poderia pensar-se que o principio em causa é estranho nas condições subjectivas da colheita.
Esse princípio acha-se formulado, porém, em termos tão vagos e genéricos que se afigura de certo modo deslocado no projecto. E nem sequer ele é intrinsecamente aceitável mesmo pondo-se de lado os actos - sem dúvida compreendidos na letra do artigo - pelos quais alguém, com intuito lucrativo, se incumbe de transportar ou de embalsamar um cadáver, ainda assim ficariam proibidos por aquele preceito actos usuais e não reprováveis, como sejam a venda de esqueletos ou de peças anatómicas para fins de estudo e a venda de múmias e outras relíquias de carácter arqueológico, susceptíveis de serem adquiridas a título oneroso, nomeadamente por museus.
Aquilo que o projecto tem em vista é, decerto, proibir que alguém condicione a sua automação, expressa ou tácita, ao pagamento de qualquer remuneração, e por isso nos pareceu tratar-se de um preceito relativo às condições subjectivas da colheita - o do carácter gratuito da prestação de consentimento.
Mesmo entendido, assim, em termos restritos, o princípio em causa ainda é porém controvertível. Como adverte Pio XII, com a sua suprema autoridade, a questão de saber se deve recusar-se sempre qualquer remuneração continua ainda por resolver sem dúvida que se cometeriam graves abusos se se exigisse uma retribuição, mas seria ir-se muito longe se se julgasse imoral a aceitação ou qualquer exigência de remuneração - o caso é análogo à transfusão de sangue, acerca da qual se pode dizer que é um mérito para o dador o recusar qualquer remuneração, mas não é necessariamente defeito o aceitá-la (129).
A chave do problema está, segundo nos parece, nas considerações feitas acima, no n.º 25, alínea d) o cadáver não pode ser objecto de transacções lucrativas porque não é coisa, e não pode portanto ser objecto de comercio, mas a cedência voluntária dele para fins a que possa ser aplicado dignamente, tal como a cessão, em vida, de sangue ou de leite, constitui um serviço que, embora seja especialmente meritório quando gratuito, pode ser remunerado, desde que a
respectiva retribuição não seja vista como preço de uma coisa, antes seja determinada e paga como compensação adequada a um serviço humano, a uma forma de colaboração entre homens.
Sem embargo, porém, de em tais condições a remuneração ser admissível, julga esta Câmara que, em geral, a orientação do projecto é prudente. São notórios os abusos cometidos por muitos angariadores particulares de sangue, e esse facto mostra ser tanto mais conveniente (...)

(129) Discurso o lugar citado, p. 24.