16 DE DEZEMBRO DE 1963 473
alto significado moral e religioso. E, ao versarmos a matéria dos direitos comummente reconhecidos a respeito do cadáver, dissemos que, de entre eles, avultam os que derivam da piedade familiar.
Fácil é ver-se, perante a doutrina exposta acerca desses pontos, como a colheita de tecidos e órgãos de cadáveres pode ser dolorosa e atentatória dessa piedade dedicada aos mortos. É manifesto que a presença e a integridade do cadáver como que atenua a dureza da separação causada pela morte, e como os desvelos e cuidados observados para com ele constituem lenitivo para o sofrimento dos familiares e amigos. Evidente é também, por isso mesmo, que as intervenções necessárias à técnica dos enxertos podem ferir intensamente os sentimentos da família e a piedade por ela devida, por direito natural, ao falecido.
É certo que, segundo consta, muitas vezes as famílias aceitam de boa mente a necessidade de autópsias, mesmo quando determinadas pela mera declaração, por parte dos médicos, de ser desconhecida a causa da morte, e é certo, igualmente, que em geral não causa perturbação o emprego de substâncias, como a cal, destinadas a apressar a consumpção do cadáver. Por esse motivo se pode perguntar-se a reacção, muitas vezes verificada contra os enxertos, não resultará, acima de tudo, da ideia de que outras pessoas irão beneficiar com o corpo do falecido, e se tal reacção não exprimirá, portanto, sentimentos algo próximos da inveja.
Não pode deixar-se, porém, de reconhecer que a ideia de que a morte era aguardada por estranhos para se apoderarem do cadáver e se aproveitarem dele, envolve qualquer coisa de chocante e é por isso susceptível de ferir os sentimentos da família. E, em qualquer caso, esta sempre há-de ver a mutilação do cadáver como uma violência exteriormente oposta aos cuidados de que ela o rodeia, e sempre há-de ver nela uma prova palpável da morte, susceptível de lhe agravar o natural desgosto.
Sem embargo, visto que o morto não sofre realmente nenhum mal e que é dever de caridade e de justiça contribuir para o bem dos outros homens, parece adequado pedir-se à família um sacrifício, decerto doloroso, mas justificado por fins nobres e elevados. Do ponto de vista sentimental, o fim terapêutico é, sem dúvida, muito mais valioso do que o das autópsias forenses, por exemplo, e esse facto constitui mais uma razão forte para os familiares, ainda que dolorosamente, aceitem o aproveitamento do cadáver para esse fim.
Pio XII, no discurso já muitas vezes citado, adverte que o assentimento dado à colheita de córneas «... pode, apesar de tudo, comportar para os próximos parentes um sofrimento e um sacrifício», mas que «esse sacrifício é aureolado pela caridade misericordiosa para com os nossos irmãos que sofrem» (122).
O dano causado na ordem moral da família pode ser, pois, um mal efectivo. Mas não parece suficiente para se rejeitar o aproveitamento do cadáver, e apenas impõe, além da necessária prudência e delicadeza nas intervenções, a regulamentação cuidadosa deste aproveitamento, em termos de evitar todos os abusos e de assegurar, quanto possível, a livre expansão dos sentimentos familiares e, por conseguinte, a justa coordenação com os direitos da família.
Em geral, deve concluir-se não haver qualquer oposição entre os fins terapêuticos e de investigação científica e os fins intrínsecos de pessoas diversas do falecido. O que pode verificar-se é o entrechoque de sentimentos legítimos e portanto um certo conflito prático com os direitos de outras pessoas, particularmente os parentes próximos, direitos com os quais o aproveitamento do cadáver tem de ser coordenado e conciliado.
30. PROBLEMAS ESPECÍFICOS RESULTANTES DE A COLHEITA DE TECIDOS E ÓRGÃOS TER DE RECAIR NOS CADÁVERES DE PESSOAS RECÉM-FALECIDAS - Já acima observámos que a especialidade do projecto em exame que lhe confere unidade e autonomia reside na circunstância de a colheita de tecidos e órgãos nele prevista haver de ser feita antes de se verificarem as alterações provenientes da autólise e, por conseguinte, antes de decorrido o prazo de garantia contra a morte aparente.
Esta urgência da colheita suscita, por um lado, problemas relativos a verificação da morte e, por outro, é susceptível de dar colorido especial a alguns problemas relacionados com o aproveitamento do cadáver.
No que se refere ao primeiro ponto, é sabido que a experiência, consagrada pela lei, tem demonstrado a necessidade de fazer mediar entre a morte e a inumação ou a autópsia um prazo suficiente para se prevenir a hipótese de o falecimento ser aparente, prazo esse em geral fixado nas 24 horas.
Parece-nos fora de dúvida ser absoluta e radicalmente ilícita a colheita de tecidos ou órgãos no corpo de uma pessoa sem a prévia certeza de que esta está morta. Tal prática, envolvendo o risco de se mutilar uma pessoa viva ou de lhe causar ou apressar a morte, constituiria gravíssima falta moral e verdadeiro crime, quer se procedesse a colheita na convicção de que essa pessoa poderia estar viva, e aceitando-se com indiferença essa hipótese (dolo eventual), quer se procedesse temerariamente na esperança de não se verificar tal hipótese, admitida como possível (culpa consciente).
Mas, segundo consta, há processos técnicos suficientemente seguros de se verificar a morte e, no pressuposto de que assim é e de que tais processos são efectivamente usados, não temos motivo para condenar a colheita efectuada antes do prazo de garantia contra a morte aparente.
Pio XII salienta, precisamente, que um dos deveres dos poderes públicos consiste em velarem para evitar que um cadáver seja considerado e tratado como tal antes de se tomarem as providências necessárias para se verificar a morte (123).
As operações adequadas a este fim têm natureza estritamente técnica, e o próprio projecto se limita a estabelecer que a morte será verificada obrigatoriamente por dois médicos e segundo as regras da semiologia médico-legal que vierem a ser definidas, ouvidos os departamentos oficiais competentes e a Ordem dos Médicos, em portaria conjunta dos Ministérios da Justiça e da Saúde e Assistência (artigo 6º e § único).
Não é por isso nem adequado, nem necessário, versar-se aqui esse assunto. Mas importa deixar-se bem vincado que a colheita deverá considerar-se absolutamente ilícita se não houver processos técnicos de se verificar a morte com segurança e se eles não forem efectivamente usados.
No tocante à possibilidade de a urgência da colheita de órgãos ou tecidos interferir com os fins a que, em geral, o cadáver está afecto, parece-nos que os únicos problemas que podem suscitar-se com acuidade são os que dizem respeito à piedade familiar e, em certa medida, a ordem e tranquilidade pública.
Todas as intervenções em cadáveres, não pertinentes os honras e ao culto fúnebre, são susceptíveis de ferir os (...)
(122) Lugar citado, p. 25.
(123) Lugar citado, p. 25.