16 DE DEZEMBRO DE 1963 469
da humanidade e acha-se em estreita relação com a personalidade e com a realização histórica do homem.
A doença e os padecimentos físicos e psíquicos são fruto da natureza corrompida pelo pecado original e do germe de morte que, por causa dele, o homem traz no próprio corpo. E, concretamente, são muitas vezes consequências de faltas cometidas pelo próprio padecente ou pelos seus ascendentes e pela própria sociedade em que vive.
O sofrimento corresponde, portanto, a uma condição comum dos homens, cuja responsabilidade não pertence, no todo ou em parte, aquele que o suporta, e que no entanto fere desigualmente os homens, sem escolher inocentes ou culpados, poderosos ou humildes, ricos ou pobres. É um mal que ameaça todos os homens indistintamente, e lutar contra ele constitui, por isso, uma exigência do bem comum, em nome da equidade e até da justiça.
Por outro lado, cada homem tem, como uma das exigências básicas da personalidade, de transcender-se e de procurar o encontro com os outros homens e com Deus.
O encontro com os outros homens implica a necessidade de os descobrir, compreender e amar, bem como a necessidade de viver os problemas deles e, portanto, de contribuir para lhes minorar o sofrimento e de procurar compartilhar com eles as provações, que são património de todos os homens.
E o encontro com Deus implica a participação nos sofrimentos alheios como expiação do mal causado pelos homens, e de que o sofrimento é consequência e castigo. Cristo, Ele próprio, encarnou precisamente para expiar as faltas dos homens e, conquanto qualquer dos seus actos tivesse valor infinito e bastante para aquele fim, quis sofrer os padecimentos atrozes da sua paixão e morte; mas, tal como em relação a morte, Ele transformou assim o sofrimento num penhor de salvação e ressurreição. E Cristo convida todos os homens a imitá-lo e, portanto, a tomar parte nessa expiação, sofrendo com Ele e, como de si mesmo dizia o Apóstolo, completando na sua carne o que falta às atribulações de Cristo (111), em obediência a essa maravilhosa solidariedade em que Ele tomou para Si parte infinitamente superior à de qualquer outro, por isso, aceitar o sofrimento próprio e compartilhar o dos outros é tomar-se parte nos padecimentos de Cristo e viver-se, com fortaleza e esperança, os trabalhos da salvação.
Dizer-se isto, todavia, não á preconizar-se uma atitude de resignação passiva, mas afirmar-se o dever de caridade de procurar minorar ou vencer os padecimentos próprios e alheios.
Para o cristão, aceitar-se a condição presente do homem, com todas as limitações que ela impõe a cada um - aquilo a que se chama destino - e aceitá-la com a consciência do que ela envolve de expiação, não é ver-se no destino uma meta para a qual se tenha de caminhar irresistivelmente, nem uma lei inflexível que conduza uns à felicidade e outros à desdita, qualquer que seja a actuação de cada um. Pelo contrário, a própria resignação perante um mal inevitável não é uma atitude passiva e de vencido, moa a transformação voluntária, por um acto interior, do sentido do sofrimento, tomado como instrumento de renovação e de salvação, e já é, portanto, uma vitória sobre o destino, conseguida naquela zona suprema da liberdade, em que é dado ao homem imprimir sentido ético a tudo quanto lhe preencha a vida, mesmo quando lhe é imposto materialmente. E, para além do que é irresistível, o destino é simples ponto de partida, é um momento de graça, oferecido por Deus ao homem como meio de se salvar e no qual ele há-de exercer a liberdade e descobrir a vocação, a missão que lhe cabe desempenhar. E o amor ao próximo, que é uma constante essencial de toda a vocação o que há-de provar-se por obras, implica necessariamente todo o esforço possível para mitigar ou vencer o sofrimento alheio.
Colocado perante a ameaça do sofrimento, o homem tem, pois, o dever de defender a saúde própria como dom precioso de Deus e de lutar pela saúde do próximo como exigência da caridade, se não da justiça, e do amor para com Deus.
Assim se verifica como é ajustado ao pensar e ao sentir cristão o entusiasmo com que Pio XII se refere à conjugação de esforços de toda a ordem por meio dos quais se tem procurado desenvolver um problema precisamente integrado no nosso tema - o tratamento da cegueira pela transplantação da córnea de um morto para um vivo. Falando do cego, diz-nos o Papa que «hoje em dia põe-se ao seu serviço a caridade e a piedade de muitos homens compreensivos, bem como os progressos da técnica e da cirurgia científica, com todos os recursos inventivos, a sua audácia e a sua perseverança. A psicologia do cego permite-nos adivinhar a necessidade que tem de uma ajuda compreensiva e como a recebe com reconhecimento» (112).
E, a propósito da psicologia do cego, Pio XII recorda a oura do cego de Jericó, operada milagrosamente por Jesus, observando que o brado do infeliz - Filho de David, tem piedade de mim! Senhor, fazei que eu veja! - ressoa ainda aos ouvidos e ao coração de todos e por isso todos lhe querem responder e prestar auxílio conforme puderem (113).
Para mostrar até que ponto esse desejo de dar saúde aos padecentes corresponde à visão cristã da doença, não parece descabido acrescentarmos nós que muitos dos prodígios operados por Cristo tiveram por objecto imediato a cura de enfermos e defeituosos, e que em muitos casos Cristo expressamente associou essas curas à fé e à salvação, como se verifica pela resposta dada ao cego, no caso relembrado por Pio XII - «Vê! A tua fé salvou-te!» - e naquele outro caso do paralítico, a cujos rogos Cristo começou por responder com o perdão dos pecados e que logo curou, para prova do poder que tinha para conceder esse perdão.
A luta contra a doença integra-se plenamente, portanto, na concepção cristã do sofrimento por tal forma que, ao mesmo tempo que é dever do homem aceitar as atribulações próprias e ajudar os outros a suportar as que os ferem, é também, e pela mesma razão, um dever de caridade e até de justiça concorrer para a conservação da saúde e para a cura dos doentes. E tanto é assim que, ainda recentemente, a Igreja reafirmou, na encíclica Pacem in terris, o direito de todos os homens a integridade física e aos meios correspondentes a um digno padrão de vida, entre os quais se conta a assistência sanitária, e proclamou que a pessoa tem direito a ser amparada no caso de doença e de invalidez (114).
Cuidar dos doentes e usar de todos os meios lícitos para lhes abrandar o sofrimento e restituir a saúde é, por conseguinte, lógica consequência da visão cristã da dor e constitui, para o indivíduo e para a comunidade, um dever de caridade e de justiça. Representa, por esse mesmo facto, (...)
(111) Epístola aos Colossenses, I, 24.
(112) Citado discurso, 18 de Maio de 1956, no lugar citado, P. 21.
(113) Ibidem.
(114) V. na edição da Unido Gráfica, Lisboa, p. 9.