464 ACTAS DA CAMARÁ CORPORATIVA N.º 51
contrar para o cadáver não somente um nome, mas a essência dele e os princípios que emergem da sua natureza e devem orientar a condição jurídica do corpo do homem falecido.
Poderá o cadáver qualificar-se de pessoa ou de relíquia ou resíduo da personalidade, como ]á se sustentou entre nós (supra, n.º 7)?
Que ele não seja pessoa, fácil é demonstrar-se. A personalidade é apanágio dos seres, racionais e livres, que se possuem e são radicalmente autónomos, e no entanto se apresentam como transcendentes e capazes do encontro com outros seres, e á óbvio que todas estas características faltam no cadáver desprendido da alma imortal que é sua forma, o corpo do homem reverte à condição de matéria dispersa e informe, e não possui nem inteligência nem autonomia.
Não é tão-pouco aceitável qualificá-lo de resíduo ou relíquia da personalidade Na concepção do homem acima sustentada, a alma espiritual, o elemento mais- nobre do composto humano, subsiste para além da morte e mantém-se apta para realizar algumas das suas operações, além de guardar a memória do corpo a que esteve unida e a vocação para de novo o recompor e animar Naquela concepção tem de reconhecer-se, portanto, que o ou do homem falecido subsiste s se conserva a personalidade dele, decerto essa personalidade já não vive na comunidade terrena e não pode sei atingida directamente feio direito, mas não é menos certo que a existência real dela não permite considerar o cadáver resíduo ou relíquia dessa personalidade. Se algum dos elementos do homem pudesse compadecer-se comi tal qualificação, esse seria a alma, que persiste como eu autónomo, e não o cadáver, que foi, por assim dizer, desintegrado da personalidade, mas nem mesmo à alma podei ia atribuir-se a condição de relíquia ou resíduo, visto ser uma substância espiritual, indivisível e incorruptível.
O cadáver não é pessoa, nem sequer resto ou relíquia de uma pessoa é, repetimos, uma matéria informe, destinada à destruição e à dispersão.
Não sendo pessoa, será então coisa?
Também esta solução é radicalmente inaceitável.
Norteando-nos pela distinção teleológica das pessoas 6 das coisas, acima enunciada, podemos afirmar com segurança que o cadáver não pertence ao número das coisas.
Estas consistem, como fica dito, em entidades sujeitas ao senhorio do homem e por isso dominadas por fins extrínsecos, e não pode duvidar-se de que o cadáver esteja afecto a fins intrínsecos e seja, por isso, e em harmonia com o direito natural, insusceptível do ser aplicado a anos extrínsecos.
O cadáver tem fins intrínsecos, dizemos nós, mas contém precisar esta asserção
Em si mesmo - como já observámos -, o cadáver é própria negação da finalidade, o destino dele consiste em corromper-se e desagregar-se, até se volver em pó e
a nada Sobre ele projecta-se, contudo, a dignidade da «essa de quem fez parte, e, por esse motivo, logo por regência da moral e do direito natural, ele deve ser (...) e venerado, em homenagem a essa mesma dignidade.
Recorde-se, antes de mais, que o corpo participa plenamente na dignidade da pessoa humana. Em corpo e alma o homem criado à imagem e semelhança de Deus, e
todos os actos dele, mesmo os mais espirituais, o pó toma parte directa, por isso não é só na alma, mas também no corpo ô pelo corpo, que ao homem cumpre cultural e desenvolver em si mesmo aquela parecença divina.
Quando o homem se encontra na graça de Deus, no expresso ensinamento do Apóstolo, o corpo dele é templo do Espírito Santo Do mesmo corpo advém ao homem a aptidão para viver no seio do mundo material e para nele desempenhar a missão sublime de apreender e fomentai a glorificação objectiva de Deus, cabendo-lhe afeiçoar a si mesmo esse mundo e, continuando a obra divina, oferecê-lo a Deus, renovado e engrandecido. Pelo corpo se unem todos os homens na comunhão da mesma origem e se entrelaçam em comunidades e na história, e, também pelo corpo, se encaminha cada um deles para dar à humanidade e ao mundo aquela forma definitiva em que há-de manifestar-se e resplandecer a plena glorificação de Deus. Tendo-se o homem desviado do seu rumo, foi ainda no corpo que, em especial, ele sofreu as penas da sua falta, de entre os quais avulta a aniquilação do corpo pela morte, com todo o sofrimento e todas as limitações infligidas à alma separada.
Finalmente, para entrai na história e de novo lhe imprimir o sentido verdadeiro, o Filho de Deus fez-se homem, tomando corpo humano da própria carne dos homens, e, pela sua paixão e sacrifício na cruz e pela sua Ressurreição, venceu a morte, dando-lhe significado novo, sempre doloroso embora, mas iluminado pela esperança de o corpo voltar à vida e, outra vez unido. À alma, participar na glória eterna, e, por este modo, como se não fora já muito o ser o corpo humano sublimado pelo parentesco de sangue com Custo, ele adquiriu, na promessas da ressurreição, a dignidade, ainda maior, de sei chamado a compartilhar para sempre o convívio íntimo e glorioso com Deus.
Se tal é, porém, a dignidade do corpo humano, igualmente digno e merecedor de respeito deve ser o cadáver humano. Desprezá-lo é ofender a memória de tudo isso que ele foi em vida e tudo quanto ele há-de vir a ser quando, pelo poder de Deus, ressurgir de entre os mortos. Venerá-lo é honrai a dignidade do corpo que ele foi, é persistir nos sentimentos que uniam os vivos ao falecido o apiedar-se da alma separada desse corpo, é confessar o significado cristão da morte e glorificar antecipadamente a grandeza da ressurreição.
O cadáver, de per si, é pó, terra, cinza e nada. Com isto, todavia, não se pretende equipará-lo a qualquer pó ou a qualquer terra aquela verdade é profundamente dramática e dolorosa, ao mesmo tempo que repassada de confiança e deferência para com Deus, pois é afirmada acerca do cadáver como corpo, que foi, de um homem, e como cinzas com as quais Deus há-de, um dia, recompor, sob 'forma mais elevada, o corpo desse mesmo reparam. Reconhecer-se que o cadáver é pó não é rebaixá-lo ao nível da matéria bruta, mas confessar o nada a que o pecado reduziu o homem, e é, também, proclamar, com reverência e esperança, que só Deus o pode salvar e restaurai Aceitai-se a realidade do cadáver não é, portanto, negar-se-lhe qualquer valor humano, muito pelo contrário, é contemplai-se e respeitar-se nele a plena verdade do homem um punhado de poema que Deus, assim como por amor unira a uma alma imortal, assim faz tombai no nada para expiação dos pecados, mas que, pelos merecimentos de Cristo, há-de voltar de novo à vida a fim de, segundo os seus mentos ou dementas, fria a bem-aventurança ou padecer o castigo por toda a e tem idade.
Conquanto desprovido de finalidade própria, o cadáver representa, por conseguinte, um estádio da existência humana e deve, por isso, ser visto à luz dos fins e da dignidade da pessoa humana, aliás subsistente. Exige a natureza que, através dele, seja respeitada a pessoa de quem foi corpo e cuja alma sobrevive e sofre com a separação,