16 DE DEZEMBRO DE 1963 459
nadas a enquadrar a autonomia radical da pessoa, estilo neste caso os chamados direitos de personalidade e os direitos reais, com os quais claramente se tem em vista assegurar ao homem a livre fruição das faculdades próprias e o exercício efectivo do senhorio sobre o mundo exterior. Mas, a par de tais situações, encontramos outras baseadas na colaboração, e que, de um ponto de vista metafísico, só suo explicáveis polo facto de no homem coexistir com a autonomia a transcendência e a consequente inclinação para o encontro com os semelhantes.
É certo que, num esforço de geometrismo, se poderia aproveitar a referência ad alterum, própria de todo o jurídico, para se caracterizar em as situações daquele primeiro tipo pelas relações estabelecidas com terceiros, em virtude das quais estes ficariam vinculados pelo dever de não prejudicar o titular dessas situações E, de igual modo, poderiam unificar-se os dois tipos de situações, caracterizando-os a todos, mesmo os que o baseiam no acordo a na ideia da cooperação, como simples composições de conflitos de interesses egoístas e irredutíveis.
A verdade é, contudo, que ninguém que seja desprovido de preconceitos poderá admitir que o direito a viver se reduza a não ser morto, ou que a propriedade de um belo parque ou de um bom livro não consista acima de tudo na possibilidade do passear e fruir o primei i o ou de se recriar com a leitura do segundo Correlativamente, impõe-se reconhecer que a colaboração dos homens á uma realidade e uma necessidade, e que é ela, nos seus aspectos primitivos, aquilo que os contraentes em geral procuram.
O grande erro da distinção entre «direitos absolutos» e «direitos relativos», e, o que é mais, o erro de se reduzirem a relações jurídicas todas as realidades do direito, consistem precisamente em se ignorar o que há de substancial, vistas as coisas por um prisma teleológico, nas várias modalidades de situações jurídicas A fundamentação moral o racionai da propriedade é, por exemplo, comummente procurada na necessidade de se garantir a independência e a dignidade das pessoas pela segurança de elas poderem dispor, a seu bel-prazer, assim no presente como no futuro, dos bens necessários a actuação livre da personalidade.
A classificação mais geral das situações jurídicas, perante uma visito ontológica da personalidade, é, pois, a que reparte as situações jurídicas em situações do autonomia e em situações de cooperação, e é ela que nos permite atingir a verdadeira ideia de relação jurídica.
A relação jurídica constitui, na verdade, o tipo mais simples de situação de cooperação e corresponde precisamente àquelas figuras que a doutrina clássica caracterizava pela ideia de «contrato» e de figuras análogas («quase-
contratos»).
Analisando-se esses tipos clássicos, verifica-se que neles se encontra uma associação de pessoas em torno de fins que, em geral, são restritos a cada uma das partes, mas em que cada uma destas assume poderes e deveres especiais normalmente recíprocos, isto é, poderes e deveres particulares de cada uma dessas partes, mas complementares uns dos outros.
Existe, porém, outra forma de colaboração, também consistente em relações entre homens ou associação de pessoas, mas nas quais estas procuram atingir fins mais vastos em que comungam igualmente, e entre si estabelecem um vínculo especial que, em vez da contraposição de «partes», típica do contrato, as unifica num «nós» em que elas se sentem integradas, mesmo quando assumem posições diferenciadas. Esta figura corresponde à «instituição-pessoa» de Hauriou e de Georges Renard, ou à ideia de «comunidade» tanto em voga nos sociólogos o juristas modernos.
No campo estritamente jurídico as instituições ou comunidades envolvem relações e associações de pessoas, mas apresentam, como traço mais saliente, a particularidade de os direitos e situações dos membros respectivos se acharem aglutinados em tomo de um fim de conjunto e por isso sujeitos a um regime diverso do que seria natural paia coda um desses direitos ou situações, e que só é explicável, exactamente, pela subordinação e adaptação a esse fim de conjunto (196).
No campo das situações jurídicas do colaboração cumpre, pois, distinguem-se duas categorias especiais os relações jurídicas, de que são protótipo os contratos, e, em segundo lugar, as comunidades.
A capacidade, o direito subjectivo, a relação jurídica e a comunidade não suo espécies de situações, mas modos de ser ou categorias do situações Na verdade, essas figuras entrecruzam-se e sobrepõem-se umas às outras, numa escala de progressiva complexidade. Assim, todas supõem a capacidade jurídica; as relações jurídicas abrangem direitos subjectivos, embora muitos vezes o âmbito destes não coincida com o daquelas (o direito a certa prestação, por exemplo, pode ser absorvido era várias relações jurídicas e compreender meios de satisfação que não implicam relações especiais anteriores como acontece com o pagamento por terceiro); por seu Indo, as comunidades compreendem normalmente direitos subjectivos e relações jurídicas.
Mas cada tipo de situações, quando absorvido noutros mais complexos, pode assumir configuração especial, inexplicável, se não absurda, quando não seja interpretado à luz dos princípios próprios do tipo mais complexo em que é absorvido.
Estas considerações têm particular pertinência no tocante à comunidade. Nela se encontram, com frequência, direitos subjectivos sujeitos a desvios de regime pode suceder, por exemplo, que os actos de aquisição praticado? por uma pessoa confiam realmente a propriedade a outra (cf artigo 144.º do Código Civil), ou que a alienação de certo direito esteja dependente do consentimento de pessoa diferente do titulai (código citado, artigo 1191.º) ou possa ser efectuada por quem não é sujeito do direito alienado (ibid , artigo 1118.º). E nas comunidades aparecem também figuras híbridas ou anómalas, como sejam a dos chamados «direitos reflexos» (interesses protegidos indirecta e reflexivamente pela protecção de outros interesses - exemplo interesses dos industriais, protegidos indirectamente pelo condicionamento industrial), a dos «interesses legítimos» (interesses de uma generalidade de pessoas, protegidos directamente, mas não por forma individualizada, mas sim global - exemplo o interesse da segurança no trânsito ou da saúde pública, protegido por regulamentações e fiscalizações públicas), e a dos deveres comuns aos membros da comunidade, mas não encabeçados em pessoas determinadas, cujo cumprimento se deixa & iniciativa privada ou é imposto segundo a maior ou menor necessidade, mediante repartição equitativa (exemplo a defesa militar -recorde-se que no passado chegou, por vezes, a ser entregue ao voluntariado ou imposta por sorteio -, a defesa civil, nomeadamente contra incêndios e calamidades semelhantes, a assistência física e moral aos doentes, a prestação de sangue para transfusões, etc).
Numa visão de conjunto, e olhando as situações concretas que ficam para além da personalidade e capacidade jurídica e das situações básicas a elas inerentes, e consi-
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(...) Cf. Curso de Direito do Família, Apontamentos das Lições do Prof. Gomes da Silva, publicados pela Associação Académica da Faculdade do Direito de Lisboa, Lisboa, 1960, vol. I, pp 128 e seguintes e 130 e seguintes.