16 DE DEZEMBRO DE 1963 457
Nesta ordem do ideias, devem mencionar-se, antes de mais, situações de caracter substantivo- nelas encontramos, por um lado, os chamados direitos de personalidade, que se traduzem na própria exigência ontológica da actuação do homem, na medida em que ela, de per si, implica a exigência de viver, de agir autonomamente, de ser inviolável nos aspectos íntimos da personalidade, de participar no senhorio do homem sobre o mundo exterior (acesso à propriedade), etc, e, por outro lado, alguns deveres genéricos que suo imediata manifestação da exigência de cumprimento do fim ultimo, tais como o respeito da dignidade própria, o honesto vivere o agir com lealdade e boa fé, o neminem laedere, etc. Secundariamente, e por forma já derivada, a exigência de realização implica certas situações genéricas, de natureza adjectiva ou instrumental, a que poderemos chamar «direitos integradores», em virtude de não valerem por si mesmos, mas como situações genéticas destinadas a integrar ou preencher o conteúdo de outras situações, estarão neste caso o chamado direito de defesa, o direito de acção judicial, o direito do disposição e aquisição, eto
Para além destas situações fundamentais, temos de entrar numa zona da situação concreta das pessoas para a compreensão da qual convém recordarem-se alguns aspectos já versados.
Como se disse, o desenvolvimento das leia é imposto pelo desdobramento do fim humano, o qual se opera em função de diversas realidades a autonomia pessoal, a vocação singular e colectiva dos homens, as circunstâncias concretas, o estado de cultura, etc.
Vimos igualmente que o fim último do homem não é egoísta, pois inclui ^necessariamente o contributo de cada ser humano para a realização dos outros, seja na comunidade, seja através da história O fim último é integral, abrange todo o bem próprio e alheio - por isso mesmo dissemos que toda a lei tem em vista o bom comum -, e essa natureza particular do fim supremo reflecte-se em todos os aspectos do desdobramento do mesmo fim Por isso mesmo, os poderes e deveres, respectivamente desdobramentos da autonomia e do dever básico de fidelidade ao fim último, não correspondem, como geralmente se pretende, a aspectos egoístas e altruístas contrapostos, antes envolvem sempre, com maior ou menor intensidade, o bem próprio e o alheio; nada há, portanto, de absurdo em poderes conferidos predominantemente para o bem de outrem, e em deveres impostos, acima de tudo, para o bem daquele a quem vinculam.
Recorde-se, finalmente, que a qualificação ética dos actos, e consequentemente n criação de poderes e deveres, não pode fazer-se directamente pela apreciação dos actos humanos em si mesmos. Na tarefa de apreciar esses actos importa ter-se presente, como se disse, o fim concreto com que são praticados e os meios (nomeadamente coisas exteriores) utilizados, bem como as circunstâncias concretas que os rodeiam.
Os fins, com a sua dupla incidência do bom próprio o alheio, e as coisas, hão-de ser portanto os primeiros elementos utilizados pela lei para organizar as situações concretas e para especificar os aspectos do exercício da autonomia (poderes) e do dever de fidelidade ao fim último (deveres especiais) que hão-de impulsionar concretamente o dinamismo próprio dessas situações
Como se opera, todavia, essa estruturação das situações pessoais?
Para respondei a esta pergunta impõe-se entrar em contacto com realidades de natureza muito controvertida, nomeadamente com os direitos subjectivos e as relações jurídicas. Fazê-lo é colocarmo-nos, todavia, na contingência de introduzir nesta investigação elementos de acentuado carácter pessoal, pouco próprios de um trabalho dessa índole, não vemos, no entanto, processo de evitar, tal risco, se quisermos chegar aos princípios que nos hão-de permitir versar o nosso tema pela forma que julgamos adequada à concepção do homem, acima exposta Vamos por isso prosseguir na nossa caminhada, evitando o mais possível, porém, tudo aquilo que represente construções de técnica jurídica mais susceptíveis de desencadear controvérsias.
À primeira figura que nos surge é logo, precisamente, uma das mais debatidas da ciência jurídica* o direito subjectivo.
São inúmeras as dificuldades que a doutrina tem encontrado ao tentar definir esta categoria Cremos, todavia, que essas dificuldades têm resultado especialmente da circunstância de os elementos a que a doutrina jurídica sói recorrer (em particular as ideias de vontade ou de poder de vontade, e a de interesse) não se mostrarem adequados & ideia que, intuitiva e empiricamente, todo o homem faz do «seu direito» qualquer coisa que existe nele e que subsiste independentemente do seu conhecimento e vontade (o direito subjectivo pode pertencer a crianças ou a loucos), mas que lhe confere prerrogativas sobre os outros homens e que estes têm de respeitar; qualquer coisa que ó inerente à pessoa e que lhe outorga uma situação de privilégio perante as outras
Procurando-se, porém, os elementos por - assim dizer todo que a lei utiliza para construir o direito subjectivo, parece poder dizer-se que eles se reduzem, em última análise, aos três seguintes: um fim concreto) os meios, especialmente coisas, próprios para o atingir, e uma série de vínculos jurídicos destinados a assegurar a utilização desses moios para a consecução daquele fim.
Temos, antes de mais, um fim humano Em razão do que acima expusemos, este fim, como desdobramento que é sempre, da exigência de realização do homem, tem de ser um fim concreto; mas a análise dos direitos subjectivos revela-nos que ele é sempre visto como dotado de valor objectivo é fim de um homem determinado, mas tem valor cognoscível pelos outros e susceptível de se impor ao direito.
Em segundo lugar, o direito subjectivo importa. A existência de uma coisa ou bem concreto, utilizável para a realizarão daquele fim.
Finalmente, o direito subjectivo envolve um conjunto de vínculos jurídicos (poderes no sentido de licitude, pode* rés de produzir efeitos jurídicos ou podei es potestativos, deveres especiais, ónus ou deveres livres ) por meio dos quais a lei assegura a efectiva aplicação daquela coisa ou bem & realização do referido fim concreto um conjunto de vínculos jurídicos por meio dos quais a lei afecta juridicamente a coisa ou bem à consecução de um fim concreto de pessoa ou pessoas determinadas (...).
Estes elementos técnicos não revelam precisamente aquela consistência especial que, na visão intuitiva atrás mencionada, faz do direito subjectivo algo de inerente a pessoa. Se, porém, os aproximarmos da doutrina exposta anteriormente, poderemos encontrar com facilidade a forma como esses elementos técnicos manifestam aspectos profundos da personalidade.
O fim que se descobre no direito subjectivo, considerado como privativo de coitas pessoas, mas ao mesmo tempo visto como dotado de valor objectivo, só tem sentido,
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(...) Manuel Gomes da Silva, O Dever de Prêstar e o Dever da Indomnisar, vol I, Lisboa, 1944, pp 74 o segs.