452 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
As doutrinas normativistas e decisionistas, seguindo por caminhos vários, concentram toda a atenção nos aspectos periféricos, nos epifenómenos do direito (poderes, direitos, relações jurídicas, etc ), caracterizando-os sem o apoio de qualquer noção básica e portanto por forma artificial e apriorística. E é destas noções, de conteúdo puramente formal, que deduzem as noções centrais, como a de pessoa, capacidade, etc, adaptando-as a essas noções formais e despojando-as, por conseguinte, de todo o conteúdo material.
Na concepção personalista que vimos desenvolvendo, o direito (como a moral) é essencialmente inerente à pessoa humana.
Só quanto a ela o direito tem razão de ser Como toda a ética, ele desempenha, na verdade, a função de coordenai a autonomia com a exigência ontológica da realização de um fim predeterminado e fixo. Por isso mesmo, o direito seria inadmissível a respeito de seres irracionais, visto eles não serem livres e o fim deles sei- assegurado pelo funcionamento das leis causais. E, transitando-se para um extremo oposto a este, tão-pouco ele seria adequado às pessoas divinas, por isso que possuem em si mesmas a perfeição e não se destinam a qualquer fim, untes são o fim de tudo quanto existe - o bem e a justiça são-lhes imanentes. Pelo contrário, o homem é um ser racional e livre, mas não possui em si mesmo a perfeição, antes é chamado a realizar-se por um bem transcendente reclamado pela própria essência, por tal motivo levanta-se quanto a ele o problema, único entre os seis terrenos, de exercer a autonomia para um fim necessário e fixo, e é à ética, e portanto ao direito, que compete coordenar este» dois aspectos, desempenhando a respeito do homem a função das leis causais acerca dos seres inferiores, mas por forma adequada à natureza de racionai e livre que o distingue.
Por outra parte, só o homem pode apreender e cumprir o direito, pois só ele tem razão para participar consciente e activamente na lei, e só ele é livre de ajustar os seus actos os exigências da mesma lei.
Finalmente, o direito não é somente adequado à natureza humana. É-lhe essencial como toda a ética, segundo já demonstrámos, pois representa o meio teimo racionai entre dois princípios de actuação que sem ele seriam divergentes e contraditórios a exigência ontológica de um fim supremo e fixo e a autonomia radical, intrinsecamente constitutiva da pessoa humana.
O direito é, assim, essencial e privativo do homem como pessoa - como ente singular e autónomo, racional e breve, e destinado a um fim transcendente, fixo e necessário.
Dizer-se que, por estes motivos, o direito é essencialmente inerente à pessoa humana, é afirmar-se implicitamente que o fim dele é o do próprio homem - fim transcendente, infinitamente elevado e nobre, que não pertence ao homem mas a Deus, e contudo confere àquele a imensa dignidade resultante do carácter sagrado desse fim.
Disto se infere que as directrizes fundamentais do direito hão-de ser a de concorrer para assegurar a realização do fim do homem e a de salvaguardar a dignidade que para este resulta do mesmo fim.
De tudo se infere que o desenvolvimento do direito, seja como ordem, seja como corpo de doutrina, tem de assentar na noção de pessoa humana Sendo o direito essencialmente privativo da personalidade humana e destinando-se a assegurar o fim e a dignidade que lhe são próprias, todas as normas jurídicas e todas as construções científicas hão-de respeitar esses objectivos, sob pena de negarem a própria essência do direito, quer recusando, em aspectos de pormenor, a personalidade e a sua dignidade, quer atribuindo esta a entes que não sejam pessoas. Nada, na ordem como na constituição científica do direito, pode parte de postulados foi mais, estranhos à personalidade, antes tudo tem de assentar no respeito do fim supremo e da dignidade do homem.
Examinadas as relações jurídicas, por exemplo, à luz destes princípios, impõe-se reconhecei que aquilo que nelas há de específico consiste precisamente em serem jurídicas, e portanto relacionadas com o direito, como princípio essencial e privativo do homem Os seres irracionais também têm necessidades, também contactam uns com os outros e lutam pela vida, mas esses factos ou suo pui as manifestações da natureza, entregues ao jogo das leis causais, ou são vistos com referência à actividade do homem, e então esses seis podem ser objecto do direito, mar, esta circunstancia só tem sentido quando vista à luz dos interesses do homem e adequada à natureza deste. Mesmo quando o próprio homem aparece como objecto da actividade de ou ti o homem, a situação assim criada, para ser jurídica, tem de satisfazer aos fins do direito - assegurar a realização do fim supremo do homem e salvaguardar a dignidade intrínseca deste
Este fim coloca o homem, antes de mais, perante o próprio direito, numa relação ética fundamental, estabelecida no âmago mesmo da personalidade e da vida por um diálogo directo entre o homem e a lei, vista esta como expressão da razão e vontade divinas. E essa relação, ao mesmo tempo fonte e cúpula de todas as outras, não constitui coisa diversa do próprio dever básico de fidelidade ao fim último.
Negar-se-ia, por consequência, o próprio fim do direito, se se abstraísse dessa relação ética fundamental e se pretendesse extrair do homem simples utilidades, reduzindo-o à função de instrumento. E para se contestar essa pretensão aberrante, não pode construir-se um conceito puramente formal de pessoa para depois se deduzir dele que o homem nem sempre se apresenta em conformidade com essa noção, deve partir-se, antes, da ideia de que o homem é sempre pessoa e que, qualquer que seja a situação dele no direito, só pode tratar-se de situação realmente jurídica, se for conforme à personalidade humana.
Um último aspecto se infere de tudo quanto fica exposto quando se afirma que o direito é inerente à personalidade e que o fim dele é salvaguardar a dignidade desta e concorrer para a realizar pelo cumprimento do fim último, não pode ter-se em vista a pessoa humana como realidade abstracta, mas sim o homem como ser real e concreto.
É muito frequente, mesmo entre autores confessadamente personalistas, cair-se neste pecado da abstracção e sustentar-se, por exemplo, que o indivíduo existe para o Estado e o Estado para a pessoa humana. Não é difícil ver-se, todavia, que tal enunciado subordina o homem vivo e real a um mito abstracto semelhante ao da «vontade colectiva» de Rousseau ou até ao «homem» do humanitarismo liberal e revolucionário - aquele «homem» em nome de cujos direitos se têm sacrificado inúmeros seres humanos concretos e inocentes.
Como resulta da síntese, acima feita, da concepção cristã do homem, este é um ser singular, criado concreta e individualmente por Deus e votado a um fim supremo que é chamado a atingir pessoal e livremente Por natureza ele vive unido aos seus semelhantes, assim, na comunidade como na história, mas nem por isso deixa de ter um fim pessoal e singular que, aliás, interessa, como tal, a todos os outros homens, como objecto de uma missão particular conferida a cada um e no desempenho da qual cada um é insubstituível.