16 DE DEZEMBRO DE 1963 449
por esse motivo, seja na interpretação e estudo científico dessas leis, seja na elaboração das leis positivas novas Este último é, precisamente, o ponto que especialmente interessa paia o objectivo deste trabalho.
Outra distinção que importa fazer-se nas formas assumidas pela ordem ética no seu desenvolvimento e desdobramento é a que separa n moral do direito
Para as doutrinas de origem idealista ou positivista, a moral seria uma disciplina essencialmente individual e subjectiva, reservada ao foro íntimo de cada homem, o direito, pelo contrário, seria formado por um conjunto de normas dotadas de objectividade em razão de consubstanciarem o «mínimo ético» indispensável à vida social e de se destinarem a garantir o bem comum e serem assistidas de coacção Este modo de ver não é, todavia, aceitável, e constitui, ata, o ponto de partida dos erros graves a que essas doutrinas têm conduzido.
Antes de mais, o pretenso carácter individual e subjectivo da moral é contrariado pelo testemunho universal da consciência humana, que sempre tem apresentado as normas de moral como obrigatórias, carácter este que, em muitas hipóteses, se apresenta com evidência muito superior à da obrigatoriedade de numerosas leis jurídicas positivas. Por isso mesmo, quando alguém contempla outra pessoa que, de boa fé, age em desconformidade com as regras morais, não pensa encontrar-se perante outra moral, mas sim na presença de um erro. O fundamento natural e divino de toda a ética impõe, na verdade, que as normas de moral, nesta integradas, tenham carácter objectivo e obrigatório
Também não são aceitáveis os critérios apontados para demonstrar que a objectividade e a obrigatoriedade sejam privativas do direito.
Não é exacto que o direito constitua a consagração do «mínimo ético» indispensável à vida social  convicção geral dos homens rectos apresento-lhes, na verdade, como tão importantes ou mais do que grande parte das leis jurídicas os deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo, bem como os deveres de piedade familiar, de fidelidade conjugal, de patriotismo, eto. E aquela tese é formalmente desmentida pela realidade sociológica: se o direito consagrasse o mínimo ético indispensável, a observância dele, por definição, deveria sei suficiente para a subsistência da sociedade, quando a realidade sempre tem mostrado que o abaixamento do nível moral enfraquece e dissolve a sociedade e mina e destrói o próprio direito, por isso mesmo, a invasão do campo da moral pelo direito, que, na teoria exposta, deveria representar elevação do nível moral, muitas vezes constitui simples defesa contra a dissolução dos costumes, quando não até tolerância para com actos contrários à moral. Na concepção em exame, as leis jurídicas deveriam representar a estrutura moral da sociedade, quando, na verdade, nos dão acerca dela uma ideia contrária à realidade, a tal ponto que o abandono de certa matéria pelo direito pode significar a intenção, por parte do legislador, de elevar o nível moral das leis jurídicas (56).
Também não é verdade que o facto de se dirigirem ao bem comum ponha as normas de direito em contraste com os da moral, pois toda» as leis se orientam primariamente para esse bem comum. Todas elas se fundam, com efeito, no fim último do homem, o qual pertence realmente a todos o por todos tem de sor procurado com a convicção de que a cada um pertence uma missão particular e insubstituível na realização desse bem em que todos são interessados, por isso mesmo, todos os preceitos da moral visam o bem comum, seja como seu objecto directo (preceitos que impõem o dever de caridade, de veracidade, etc ), seja como aspecto daquilo que, nos deveres para consigo mesmo ou para com Deus, cada homem deve realizar em benefício dos outros, na comunidade e na história (87). Segundo a mensagem cristã, toda a lei se resume em dois princípios fundamentais - amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a nós moamos, nenhuma lei pode, consequentemente, deixar de tomar em consideração, em primeira linha, o bem do próximo igual ao nosso, e portanto o bem comum.
De repudiar é também, finalmente, a opinião de que o direito seja por essência assistido da coacção Sempre se admitiram como jurídicas numerosas leis desprovidas de garantia coercitiva (direito internacional, direito canónico e muitas normas de direito interno, nomeadamente de direito constitucional e de família) e é muitas vezes perante ofensas sofridas em condições de não ser possível ou eficaz o recurso a coacção que se tem consciência mais viva do direito o do dever Por outro lado, a coacção mostra-se ineficaz e não chega mesmo a efectivar-se sempre que a generalidade das pessoas não está convencida da obrigatoriedade da lei (pense-se, por exemplo, na resistência oferecida por muitas sociedades, através de séculos, à proibição do duelo e às penas para ele cominadas pelas leis eclesiásticas e civis), a verdade á que, se a experiência demonstra que a coacção é frequentemente adoptada no direito e adequada à natureza dele, também não deixa de faltai em muitos casos e de ser ineficiente em muitos outros. E compreende-se bem que assim seja, pois a coacção é estranha ao fundamento do dever, seja do ponto de vista material, em que a obrigatoriedade se baseia na vontade de Deus ou da autoridade nela fundada, seja do ponto de vista formal, porque a lei só obriga efectivamente quando a generalidade das pessoas tem acerca dos respectivos preceitos a opinio jurus vel necessitai». À verdadeira função da coacção consiste, quando exista «opinio júris», em defender esta contra as desilusões ou desenganos que a impunidade da injustiça poderia causar nos homens honestos, e em fortalecê-la, intimidando os possíveis infractores pela consciência de que a repressão será real e geralmente aprovada, quando não existe a opinio juris desaparece a razão de ser da repressão, e esta torna-se, aos olhos de todos, um mal injustificado, a própria consciência moral leva então a reprová-la e a iludi-la, quanto possível
Deve reconhecer-se, portanto, que a coacção não é necessária ao direito, mas simplesmente adequada à natureza dele e própria para o fortalecer, desde que ele se encontre firmado na convicção moral dominante na sociedade. A coacção não é fundamento do direito, mas efeito da opinio juris, e só nessa medida é realmente eficaz
(36) A abolição da regulamentação legal da prostituição, par exemplo, não representa, em princípio, um recuo moral do direito, mas o intento de eliminar um ouso de tolerância das leis para com praticas imorais Para ilustrar as afirmações feitas no texto, recorde-se o que diremnq acima, parafraseando o trecho de Savigny citado na nota 30 deste parecer.
(87) E elucidativa a opinião do Santo Tomás acerca deste problema (Sumina Theologica, I-II, q 90 a 2). Referindo-se à lei em geral, o mesmo antes de enunciar as grandes divisões das leis, sustenta ele que toda a lei é ordenada primariamente para o bem comum a lei assenta na ração, que é regra e medida dos actos humanos, e aquilo que, no agir, a lei tem de ter em vista primariamente á o fim último, e par isso tem de respeitar acima de tudo a ordem relativa a esse fim, que & a bem-aventurança. Por outro lado, sendo a parte ordenada para o todo, e sendo o homem individual parte da comunidade, ó necessário que a lei atenda, antes de mais, a ordem adequada à felicidade comum. E por isso qualquer preceito particular só terá razão de lei enquanto for ordenado para o bem comum.