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16 DE DEZEMBRO DE 1963 443

piores aberrações; e o cadáver, tal como outras realidades por assim dizer intermédias (partes separadas do corpo humano vivo, por exemplo), passa a constituir, em semelhante perspectiva, o perigoso traço de união entre a pessoa e a coisa, e por conseguinte a ponte por onde a doutrina referente :a esta última pode invadir é campo da primeira.
O nosso problema acha-se, pois, desprovido de verdadeira solução.
Discutir-se a natureza jurídica do cadáver não é apenas procurar-se para ele uma qualificação ou mero enquadramento em categorias já conhecidas, sem influência real no regime jurídico dele, e antes em termos de permitir a obliteração desse regime por considerações estranhas à solução assim encontrada. «Natureza» é, segundo a Escola, a essência de um ser, enquanto olhada como princípio das operações próprias desse ser; natureza jurídica de certa realidade será, portanto, a essência desta enquanto princípio das manifestações dela na vida jurídica, ou seja, enquanto vista como fonte do regime que lhe é imposto por lei e directriz profunda da estruturação e da actuação dessa realidade no mundo do direito. O problema da natureza jurídica do cadáver não pode resolver-se, por isso, descortinando-se para ele simples qualificação ou rótulo formal, tomado apenas como ponto de partida para uma teoria que lhe pode ser, afinal, mais ou menos estranha; para lhe dar solução correcta importa antes descobrir-se e estruturar-se aqueles aspectos da essência do cadáver que, de acordo com essa mesma essência, devem dominar o tratamento jurídico a que ele há-de ser submetido.
Pôr outro lado, não é difícil verificar-se que o carácter de certo modo indefinido e incongruente das soluções dadas à nossa questão resulta, em última análise, dos vícios profundos de que tem sido inquinada doutrina jurídica - moderna, e não será ousado dizer-se que o cadáver constitui uma daquelas realidades que, fugindo ao esquematismo extremista da doutrina, representam pontos de crise das construções adoptadas pela generalidade dos autores. É óbvio que, visto à luz dos princípios acima expostos acerca do homem e da sua morte, e contemplado portanto numa perspectiva ontológica e realista, o cadáver não pode ser considerado pessoa, mas possui um valor intrínseco profundo e de suma importância para a vida humana; ora a ciência jurídica hodierna, toda moldada em esquemas abstractos e formais, não pode apreender este duplo aspecto, e por isso é impotente para resolver, por forma satisfatória, a questão da natureza jurídica do cadáver.
Pelos motivos acima expostos (n.º 9) não temos possibilidade de discutir esta questão em toda a sua amplitude. Sem embargo, e como resulta das considerações agora feitas, o nosso problema só pode resolver-se se nos conseguirmos emancipar da orientação corrente e soubermos transplantar para a teoria jurídica os ensinamentos da concepção cristã acerca do homem, o que só é praticável se revirmos as posições jurídicas fundamentais adoptadas pela doutrina.
Por este motivo, e sem abandonar os estreitos limites que impusemos à nossa investigação, temos de começar por pôr em evidência certos aspectos relativos à ideia de pessoa e de coisa, que um estudo mais aprofundado do problema revelaria constituírem o fulcro dos vícios de que enfermam as construções correntes entre os juristas.

16. CRISE ACTUAL DA DISTINÇÃO ENTRE PESSOA E COISA.- A doutrina jurídica moderna tem-se desenvolvido, em geral, sob o influxo de certas tendências e atitudes de espírito que, moldando embora as construções jurídicas desde os mais profundos dos seus alicerces, não são verdadeiro produto da elaboração científica do direito, antes representam formas - melhor se- diria deformações - que o pensamento jurídico tem recebido do conjunto das correntes filosóficas e políticas dominantes nos últimos séculos.
Queremo-nos referir particularmente àquelas formas de pensamento a que, para usar de terminologia já consagrada (73), podemos chamar «decisionismo» e «normativismo», modalidades de pensamento essas hoje em certa medida já em declínio, mas que - ou independentes e bem estremadas, ou associadas umas às outras em estranhas simbioses - nos tempos modernos têm imperado no espírito dos jurisconsultos, quase com absoluto exclusivismo.
Como é sabido, para o decisionismo, a lei constrói arbitrariamente as realidades jurídicas, ao sabor da vontade dos governantes ou da maioria dos, membros da sociedade (a «vontade social», captada por meios empíricos). Para
o normativismo, eivado de idealismo e logicismo, a doutrina jurídica transforma-se numa pura técnica formal, reduzindo-se a realidade jurídica a conceitos técnicos e a relações lógicas entre eles descobertas por simples processos racionalistas.
São variadas as correntes gnoseológicas, metodológicas e, até, políticas que conduzem a estas formas de pensamento jurídico, e, por esse motivo, pode divergir muito, de caso para caso, o conteúdo com que se apresentam as construções doutrinárias nas quais elas se manifestam.
Esta circunstância- poderia embaraçar-nos bastante se fosse necessário analisá-las todas para chegarmos à nossa conclusão. O que nos interessa, todavia, não são os fundamentos e a formulação das diversas opiniões, porquanto a própria variedade destas as priva do valor objectivo e da autoridade indispensável para representarem o conjunto da doutrina; interessa-nos, sim, o tom geral desta acerca dos postulados em que deve assentar a resolução dos problemas suscitados pelo nosso tema -tom geral que, aliás, em muitos revela mais o contágio de orientações em voga do que tomadas de posição reflectidas e estruturadas-, e a verdade é que, vistos nessa tonalidade dominante, há, entre os representantes dos mencionados tipos de pensamento, a homogeneidade suficiente para nos ser lícito partir do conjunto da doutrina, sem tentar apurar os pormenores das construções em que ela se ramifica.
Feita, portanto, esta ressalva, de que não se trata de expor um corpo de doutrina, mas tão-sòmente de salientar alguns aspectos gerais da orientação corrente que maior influência exercem na nossa questão, começaremos por pôr em evidência o carácter de extrínseco que essa orientação atribui ao direito.
A disciplina jurídica, seria estranha à essência do homem alguns, como os liberais, diriam mesmo que ela lhe é fundamentalmente contrária - e resultaria apenas de necessidades sociais ou de conflitos de interesses; a vida humana seria, de per si, desprovida de significado ético e jurídico, e seria a vontade social ou a norma que, por assim dizer, do exterior e artificialmente, a sujeitaria ao império do direito, o qual, por isso mesmo, só poderia apoiar-se na coacção e teria sempre o carácter de positivo - consistiria sempre num conjunto de normas vigentes de facto em certa e determinada sociedade.
Deste carácter de extrínseco da ordem jurídica deriva, como primeira consequência, a natureza formal das noções básicas do direito, nomeadamente das de pessoa e coisa.

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(73) Veja-se o estudo de Carl Schmidt Sobre as três modalidades cientificas do pensamento jurídico, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 26, pp. 5 e segs., e n.º 27, pp. 5 e segs.