434 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
E para nós, que no cristianismo forjámos a nossa alma nacional, é menos do que nunca descabido tomar consciência dos factores que a formam, quando se trata de apreciai uma lei essencialmente relacionada com os valores da personalidade, e cujas repercussões podem ir até muito além de quanto os seus preceitos regem directamente.
Outro motivo, ainda, impõe a análise destas concepções fundamentais, inerentes a nossa cultura a necessidade de as leis respeitantes à personalidade e, nomeadamente, ao cadáver não ofenderem os convicções correntes, no que têm de respeitável, sem contudo se deixarem embai açaí por ideias erróneas ou meramente adventícias Ora o que há de digno de consideração em tais convicções resulta, precisamente, das concepções custas acerca do homem, da sua vida e morte, e do seu cadáver, mas, confundidos com elas, pode haver erros e superstições que as desvirtuem, e de que o legislador pode licitamente libertar-se ou tentar consegui, e, para se fazer a destrinça correcta destes vários elementos, é indispensável conhecerem-se as ideias fundamentais do cristianismo, mesmo para aqueles que, embora as não aceitem integralmente, desejem honestamente respeitá-las como ideias dominantes.
Tudo isto nos obriga,, por isso, a tentar uma síntese da doutrina cristã acerca destes problemas, antes de procurarmos enunciar as nossas posições relativamente às questões que nos cumpre apreciar.
11. A PERSONALIDADE HUMANA E AS SUAS COORDENADAS
FUNDAMENTAIS - A grandeza e a dignidade do homem, e a par e em contraste com elas a constante insatisfação, a fraqueza e pequenez perante as audácias dos seus ideais, a caducidade, enfim - essas duas ordens de aspectos antagónicos cujo conflito exprime todo o drama da humanidade, mas lhe permite também alcançar, pela história dos valores superiores, a glória e a felicidade -, assentam as suas raízes, segundo a concepção custa, na própria génese do universo e do tempo e na missão que neles foi atribuída ao género humano
A simples razão natural pode, de per si, encaminhar-nos nesse sentido, e, por isso, sa filosofia perene» oriunda do pensamento grego ]á nos permite atingiu importantes aspectos daquela concepção, não obstante aquele pensamento ser anterior ao cristianismo e isento de qualquer influência da Revelação e mesmo quando completado e desenvolvido por autores cristãos, como Santo Tomás, não receber dos ensinamentos da fé mais do que sugestões, depois explicadas e confirmadas por via racional.
Assim nos demonstra aquela filosofia que, reflectindo-se sobre o homem e sobre o Mundo, se é levado a conclui que todo o universo é criado por Deus ser absoluto, dotado de todas as perfeições em grau infinito e criador e ordenadar de todos os outros sei es Existindo. Ele todo o bem possível, a perfeição que as intui as podem atingiu é sempre reflexo e participação na perfeição divina, é sempre imagem (ainda que embaciada pelas deficiências próprias dos seres finitos) daqueles aspectos dessas perfeições de Deus que, conhecidas por. Ele em si mesmo, constituem as ideias divinas ou arquétipos, que são modelo das criaturas e lhes determinam o ser e a actividade, e que, para cada um delas, são a forma, o elemento que põe a respectiva matéria em acto e organiza e rege as operações que lhe suo próprias.
Partindo destas premissas e da distinção entre matéria e foi ma, e potência e acto, revela essa filosofia como todo o acto tende a comunicar-se e todo o ser em potência é inclinado para atingir ou integrar a sua forma, tomando-se acto O bem é difusivo e o ser é (...), e por esse motivo em todo o ser que se encontre em acto imperfeito há a inclinação natural para integrar a sua forma, inclinação a que Santo Tomás chama apetite natural e que, em grau sucessivamente mais elevado, se manifesta nos sei es desprovidos de conhecimento, naqueles que são dotados de conhecimento meramente sensitivo e no próprio homem, a quem foi facultado possuir o conhecimento intelectual e o correspondente apetite racional, a vontade.
Esse «apetite», qualquer que seja a natureza respectiva, revela que todos os seres criados são inclinados por imposição da própria essência para um bem, para um resultado «apetecido» consciente ou inconscientemente, que ainda não possuem e para o qual caminham - resultado que, por isso mesmo, paia eles representa um fim. Nisto se evidencia o princípio da finalidade, imposta a tudo quanto existe no universo e que pressupõe uma inteligência, transcendente e ordenadora, e uma vontade que exige o cumprimento desse fim e determina a natureza dos seres por forma a incliná-los para o demandarem Por isso se afirma que o fim é a causa das causas.
No homem encontram-se as três formas de «apetite». Nele se manifestam, antes de mais, exigências naturais, independentes do conhecimento sensível ou racional, como sejam as de viver e a de conservar-se e desenvolver-se Igualmente se apresentam nele formas de apetite sensitivo em que se compreendem algumas exigências de extrema importância para a realização da personalidade, tais como a exigência da inviolabilidade da dignidade e intimidade próprias e a aspiração vital de amar e ser amado. Finalmente, existe no homem o apetite intelectual ou vontade, que se dirige ao bem em si mesmo, e, portanto, a um bem susceptível de ser apreendido pela razão e, como tal, objecto adequado das potências humanas mais elevadas.
Nos aspectos mais nobres, destas tendências, para se realizai, o homem não permanece, aliás, confinado nos limites das suas inclinações internas Segundo o pensamento de Santo Tomás, o conhecimento implica a apreensão dos «formas» dos seres conhecidos, facto pelo qual a alma humana se toma em tudo quanto conhece e tende a realizar essas formas que possui em si mesma. E, formulando e combinando juízos sobre a idealidade imanente nos seres do universo, o homem descobre novas idealidades que passam a constituir «formas» novas, as quais, em obediência às próprias leis do ser, tendem a actuar-se Daí ser lícito, em certa medida, afirmar-se que o homem tem o poder de criar, pois concebe formas novas e age para as pôr em acto, nesta perspectiva se encontra a interpretação metafísica da indústria, da arte, da invenção, das criações humanas de toda a espécie uma terra cultivada, uma árvore podada, uma casa, uma cidade um país, a civilização inteira, suo a alma humana materializada - são como que ura sei ampliado, um prolongamento que o homem outorga a si mesmo, difundindo a sua idealidade imanente (12).
Todos os tipos de «apetites» que se apresentam no homem resultam da própria essência dele desligados de tudo o que, na condição presente da humanidade, possa implicai desvio ou deturpação da natureza, são exigências ontológicas da personalidade, e manifestações da finalidade e da ordem criadas por Deus, ordem na qual até a vontade livre tem de integrar-se, por isso que é movida pela razão e esta é, precisamente, participação na inteligência ordenadora de Deus.
Por tal motivo os «apetites», no que têm de profundo e radical não são meras tendências adquiridas, nem obra da vontade humana, não constituem realidades extrín-
(32) Sentillanges, La Philosophie da St Thomas d'Aquim, II, Aubier, Editions Montaigne, Paris, 1940, p 231