436 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51
motor» que se contente com o dar à criação o impulso inicial e logo a abandone ao logo da mera causalidade material ou à iniciativa das vontades livres, desprovidas de todo o apoio divino. Ao invés, Deus ama profundamente a Sua obra e dedica-lhe constante e infinita solicitude. É Ele que, em cada momento, sustenta o sei de todas as criaturas por uma actividade directa, sem a qual nada poderia subsistir, e Ele é quem opera, como agente principal, na actividade de tudo quanto existe, mediante a sua providência, encaminhando assim o universo, segundo um plano eterno, paia o fim paia que o criou, sem suprimir, aliás, a actuação real das criaturas E nem os seres livres - o homem, designadamente - são isentos desse governo, conquanto Deus os oriente por influxos de seu infinito amor que os não privam ria liberdade, antes os supõe responsáveis e capazes de mérito ou demérito a Providência dirige a cada homem um apelo constante para que se eleve até Deus e, por isso, longe de tornar supérflua a actividade humana, é ela quem lhe assegura sentido, forca, confiança e orientação, e que, em cada momento, lhe oferece oportunidade jamais renovada para que ele responda àquele apelo, contribuindo para que o Mundo atinja o estado que, sem tal contribuição, nunca chegaria a conseguir (35).
Faia o desempenho dessa missão, Deus não se limitou a colocai o homem no Mundo, como simples parte ou aspecto dele. antes o criou, segundo a Escritura, á Sua imagem e semelhança Estia parecença do homem com Deus é plena do mais profundo e intenso conteúdo, mas manifesta-se, acima de tudo, naqueles atributos que fazem dele uma pessoa Os traços divinos que resplandecem no homem são os mesmos que aparecem na narração bíblica da acção criadora majestade, transcendência, poder e vontade soberanos, isto é, a personalidade de Deus Estas características surgem no homem enquanto Deus o fez partícipe delas A semelhança divina, de que fala a Escultura, tem de procurar-se, pois, na personalidade do homem, na sua autonomia ontológica, na sua capacidade de consciência e de vida próprias (3B)
Por sobre os aspectos puramente naturais, que, por si, tanto enriquecem já a personalidade do homem, Deus criou este num estado de especial perfeição, fecundo em dons pretextarias (a imortalidade do corpo, designadamente) e sobrenaturais que, muito acima das capacidades naturais, outorgavam ao homem o convívio íntimo com Deus e o faziam participar da própria vida divina
Com estes dons naturais e sobrenaturais, o homem foi criado com dignidade profunda que nenhum outro ser terreno pode igualar.
Mas não se trata aqui de simples diferença genérica entre os seres inferiores e a «espécie humana», tomada globalmente. Cada homem é um ente essencial e absolutamente singular. Pelo seu corpo, o homem recebe, é certo, a influência dos antepassados e possui, portanto, caracteres comuns a todos os homens (todos, segundo a fé cristã, derivam de um só progenitor) e, em especial, aos seus familiares e compatriotas que de mais perto lhe tocam, a alma, porém, cada alma é criada singular e concretamente por Deus, ainda que adaptada ao corpo comunicado pelos pais (37), e esta circunstância assegura a pada ser humano individualidade e singularidade verdadeiramente radicais.
Por isso, a natureza humana é sempre única e idêntica, mas realiza-se por forma diversa em cada um dos indivíduos. As diferenças dependem da especial dotação divina dotado de um dom divino especial, o indivíduo entra neste Mundo para aí ser um ente especial e singular, em nenhum outro indivíduo da mesma espécie se realiza a natureza humana do mesmo modo que nele - cada homem é um novo ser humano, por assim dizer. A peculiaridade fundada no dom especial não é um elemento singular que se manifeste em aspectos singulares essa peculiaridade comunicada ao homem por Deus é algo que compenetra todo o ser dele, que lhe determina as representações e ideias, os conceitos, os sentimentos, as inclinações, as tendências e desejos, e lhe dá certo temperamento ou tonalidade geral, uma certa orientação fundamental, um certo modo de gozai e amar, uma certa forma de constância e de tenacidade, comunicando-lhe, por todos estes factores, um carácter determinado (38). A individualidade humana é, pois, a realização de uma essência na existência de um exemplar não reiteráveis e insubstituível (39).
Individualidade e existência são, na verdade, duas noções conexas, tal como o são as de universalidade e essência. A tendência para dedicar excessiva atenção ao universal em prejuízo do individual, se não resulta de uma mentalidade panteísta, refere-se ao puro Deus pensante, o sor individual, pelo contrário, conduz-nos a vontade amante do Deus Criador - um Deus que pensa o que una, sem dúvida, mas que não pensa no universal como o homem cada ser individual é um pensamento singular de Deus, e Deus ama-o com amor único e insubstituível (40)
Desta singularidade resulta que cada indivíduo tem uma missão particular paia desempenhar e na qual ninguém pode substituí-lo, se existisse mais um ou menos um homem, e por mais insignificante que fosse, visto exterior e superficialmente, a história humana seria diferente do que é (40). Cada homem possui a plenitude de um sei singular e individual, e a vontade criadora de Deus confia-lho com o encargo de o fazer valer - cada pessoa individual deve responder perante Deus pela valorização moral deste ser único e insubstituível (42).
Esta doutrina põe em evidência, por forma intensíssima e que vai muito além daquilo de que os homens, mesmo cientes, têm habitualmente consciência, o valor grandioso de cada ser humano. Não é só o existir paia conhecer, amar e sei vir a Deus, consciente e livremente, não é só o ser semelhante a Deus e poder participar da Sua vida divina, muito acima das forças naturais, nem só o ser chamado à bem-aventurança eterna da intimidade com Deus - é tudo isso, sim, mas tudo isso destinado a cada homem em concreto, que Deus criou por um acção singular de vontade amantíssima e que quer fazer participar pessoalmente na Sua glória eterna.
Com tal doutrina, porém, não se defende o individualismo e o egoísmo. Voltado para si mesmo, fechado no mundo estreito do seu egoísmo, o homem não vê senão a sua pequenez e isolamento, não sente senão o horror da mais insaciável insatisfação ou da mais estéril das existências, e aniquila a sua personalidade e o seu ser, como, na velha fábula, Narciso se perdeu ao apaixonar-se e ao inclinar-se para a própria imagem.
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(...) Sobre a conservação e governo do Mundo por Deus, veja-se Michael Sechmais, Teologia Dogmática, vol II, Dios Criador, trad espanhola, Ediciones Rialp, Madrid, 1959, pp 185 a 170.
(...) Ibid, pp. 803 e 804
(...) Ibid , p 844.
(...) Ibid., p. 887.
(...) Bernard Haring, La Loi du Christ, trad francesa, Desclée & Cle, Bélgica, vol I, p. 111.
(...) Haring, obra e volume citados, p. 112
(41) Michael Schmaus, obra e volume citados, p 304 e 337.
(") Haring, obra e volume citados, p. 112.