16 DE DEZEMBRO DE 1963 437
A semelhança do homem com Deus implica a imitação de Deus, isto é, a aplicação do homem a viver na mistérios da transcendência e do amor de Deus, e a cultivar em si a capacidade para se engolfar nesses mistérios e para realizar em si mesmo a vontade criadora de Deus.
Como adverte Schmaus (43), a pessoa distingue-se da natureza em virtude de se autopossuir, da sua responsabilidade o da nua finalidade própria, por um lado, e em razão da transcendência, por outro Transcendência significa orientação para o «tu» (coexistência), parti o mundo (existência no mundo) e, em definitivo, para Deus (o homem transcende infinitamente o homem).
O primeiro destes aspectos da transcendência corresponde ao «encontro» de cada um com os seus semelhantes Cada homem representa; como se disse, um modo particular de realização, numa existência concreta, de uma mesma essência, e é esta que encerra os valores universais, próprios da humanidade Por isso, só erguendo-se acima da sua individualidade e descobrindo e amando nos outros esses valores universais é que o homem pode ter plena consciência daquela essência e realizar integralmente os valores nela contidos (44).
Para alcançar este objectivo há-de cada um tomar, por um lodo, consciência da própria individualidade e singularidade, bem como dos valores privativos delas, não porém em atenção a si mesmo, mas a Deus de que eles são um reflexo, e, precisamente por esta última consideração, há-de, por outro lado, abrir a fuma à simpatia pelos outros, procurar compreendê-los e respeitá-los no que têm de únicos e concorrer para que eles possam realizar e expandir, como seres racionais e livres, os bens que por sua parte encerram Por outras palavras deve coda um, era primeiro lugar, possuir-se a si próprio, disciplinando e hierarquizando as suas tendências e gostos, a sua inteligência e vontade, cultivando-se e descobrindo a missão que lhe cabe exercer, e respeitando e defendendo a própria intimidade e integridade, e deve, a par disso, respeitar a intimidade dos outros, ajudá-los a por seu lado desenvolvei em e aperfeiçoarem a sua individualidade, e, sem quebra daquela intimidade, vibrar de simpatia pelo bem existente nos outros e dar-lhes o contributo do seu bem individual
Procedendo assim, os homens, apreendendo o seu» e o «tu» em toda a extensão da sua singularidade, por um lado, e da sua transcendência, por outro, tendem b unir-se num «nós», no qual cada um se sente plenamente integrado sem perder o que é próprio e sem esquecer os outros, e por este modo se forma, numa palavra, a comunidade.
As comunidades, ainda que representem «acidentes», visto não poderem subsistir por si, sem os indivíduos que as compõem, constituem realidades vivas animadas de espírito colectivo e diferenciadas pela diversidade dos próprios membros, pelas características mais ou menos próximas destes, pela maior ou menor contiguidade de origem ou de lugar, pelos ideais que lhes silo peculiares, e, em suma, pela simpatia mais ou menos intensa que os une; e adquirem, por tudo, individualidade específica, com a sua missão própria, e são tão queridas por Deus como os próprios indivíduos (45).
O segundo dos aspectos da transcendência do homem assenta no seu encontro com o mundo, a fim de, nele, descobrir, amar e desenvolver a glorificação de Deus.
Entre ns consequências da semelhança divina do homem conta-se, segundo a narração bíblica, a posição, de senhorio no mundo - o homem é imagem o semelhança de Deus, e por isso é representante de Deus sobre a terra(46) «Deus disse façamos o homem a Nossa imagem, como Nossa semelhança, e que ela domino sobre os peixes do mar, as aves do céu, todos os animais selvagens e todos os animais que rastejam sobre a terra Deus criou o homem à Sua imagem, a imagem de Deus o criou, varão e mulher os criou Deus abençoou-os e disse-lhes sede fecundos, multiplicar-vos, encher a terra e submetei-a, dominar sobre os peixes do mar, as aves do céu e sobre todos os animais que rastejam sobre a terra» (47).
Este domínio outorgado ao homem não significa, todavia, que ele possa fazer da terra tudo quanto lhe aprouver. O «cultivar da terra», de que fala a Escritura, é um mandado divino, e o homem não é proprietário, mas administrador da terra - o verdadeiro proprietário dela é Deus, cuja vontade há-de realizar-se pela colaboração leal do homem (48).
«Deste texto deduz-se que Deus não deu ao mundo a forma definitiva Deus entregou ao homem a Sua obra para que a continuasse. O homem há-de continuar o que Deus começou Deus manifestou grande confiança no homem ao incumbi-lo da missão de completar a Sua obra e o homem é responsável pelo estado em que possa encontrar-se o mundo» (40).
Os dois aspectos da transcendência humana, anteriormente descritos, revelam uma outra particularidade que os completa e amplia o quo para nós tem interesse muito especial - a historicidade do homem.
Já dissemos que, segundo a narração bíblica, Deus confiou ao homem o senhorio do mundo para que ele, Sua imagem, continuasse a obra da criação, e que, nessa tarefa, cada um tem uma missão no desempenho da qual ninguém o pode substituir, por outra porte, tombam assinalámos a tendência essencial dos homens para se unirem em comunidades dotadas igualmente de uma missão especial e fundadas na simpatia e proximidade dos homens e, portanto, na missão particular de cada um deles Oro é evidente que, por todos estes aspectos, a vida dos homens é essencialmente solidária, e não apenas em cada momento, através das comunidades em que se integram, mas também no decurso do tempo, ao homem foi dado «cultivar a terra» e, portanto, cabe-lhe extrair progressivamente da criação todas as possibilidades de revelação e de glorificação de Deus que ela encerra.
À vida e a obra de cada homem não nos surgem, portanto, desligadas do passado nem indiferentes para o futuro Cada um insere-se num momento da história, no qual encontra acumulada o herança biológica, cultural, ética e religiosa do passado, e é perante esse condicionalismo - ao qual se dá o nome de «destino» - que ele há-de fazer valer o poder criador da sua vontade livre e prestar ou recusar a colaboração que lhe é pedida Neste encontro com o passado, que lhe limita as possibilidades mas também as estimula, o homem, cada homem, deve retrabalhar a herança dos seus antecessores e é, por isso, responsável pelo futuro (50).
Os caracteres distintivos da personalidade humana e a missão singular que a cada homem compete desempenhar através da sua vida e da sua participação na comunidade e
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(46) Schmaus, obra e volume citados, p 308
(47) Cf. Haring, obra e volume citados, pp. 112 e 113.
(48) Ver sobre este assunto Haring, obra e volume citados, pp 113 e segs., e Schmaus, obra e volume citados, pp. 859 e segs.
(46) Schmaus, obra e volume citados, p 308.
(47) Génesis, I, 26 a 28
(48) Schmaus, obra e volume citados, p. 309
Ibid., pp. 308 e 809.
(...) Haring, obra e volume cita pp. 129 e 180.